por Reginaldo Guimarães
Conjuntamente coma devoção religiosa, recebemos dos portugueses também a tradição popular dos três santos do mês de junho: Santo Antônio, São João e São Pedro. E até o princípio deste século nenhuma festa religiosa de caráter folclórico, a não ser o Natal e a noite de Reis, capitalizava uma riqueza de motivos igual àquelas de junho.
Infelizmente, com o ritmo dos novos costumes, essa tradição foi-se empobrecendo, sobretudo nas grandes cidades que substituíram a fogueira, os balões e os fogos pelos bailes de gala ou à caipira.
Contudo as cidadezinhas do interior conservaram ponderável parte das brincadeiras de antanho.
Antigamente, nas cidades do Nordeste, área cultural que conservou mais nítida a cultura lusitana, armavam-se fogueiras com volumosos toros de madeira, acesas ao anoitecer da véspera de Santo Antônio, São João e São Pedro. E nessa ocasião, o arrumador da lenha tinha cuidado para que os grossos troncos, depois de parcialmente consumidos, não tombassem para o lado da residência. Em caso contrário, morreria alguém da família muito em breve.
Na Bahia havia ruas, como a da Saúde e a do Jogo Carneiro e centenas, do mesmo jeito, que não mediam mais do que dez metros de largura, não deixando os moradores de empilhar a sua fogueira. E não era raro ver-se duas moradias, frente a frente, disputarem o maior volume de fogo.
Depois que o fogaréu diminuía a intensidade e um montão de cinza e pequenos braseiros restava dos musculosos troncos, os rapazes e as moças brincavam de "pular fogueira". E os namorados, para que os santos os protegessem, facilitando-lhes o casamento, saltavam de mãos dadas. E os mais velhos assavam milho verde e batata-doce no braseiro.
As janelas, que raramente eram abertas nos dias comuns, nessas noites ficavam escancaradas, com as crianças debruçadas soltando pistolas e traques, a gritar:
— Acorda, João
O céu ficava coalhado de balões. Cada família procurava superar o vizinho, numa prodigalidade de novo rico. O trabalho quase em segredo de meses atrás aparecia de repente. E várias vozes exclamavam, apontando os balões, enquanto o rojão riscava os ares:
— O malhado ganhou este ano! Que beleza de balão-de-barquinha!
Uma culinária típica enfeitava a mesa da sala de jantar. Nela predominava o milho verde, que para ser colhido nesse tempo plantara-se no dia de São José.
Além do milho, apareciam o coco, a canela, o cravo, o mungunzá, a carimã, a tapioca, o amendoim, o arroz. E de todos esses ingredientes pontilhava, em todas as mesas, por mais pobre que fosse, a gostosíssima canjica de milho verde espraiando-se nas fôrmas mais graciosas e depois cortada em fatias triangulares para alegria dos gourmets acompanhada com licor de jenipapo, maduro ou aluá.
Não se desprezava também a pamonha de carimã ou de milho, o arroz-doce, os afamados bolos de receitas disputadas, o milho assado, o milho cozido, a batata-doce, o mingau de tapioca.
Dentro de casa ou no jardim, sentados em cadeiras, moços e velhos puxavam a sorte, comiam o amendoim e liam o versinho impresso numa pequena tira de papel colorido. Outros divertiam-se de "disparates" ou cantavam ao violão. Eram noites de alegria popular.
Os estudantes, que moravam em repúblicas, enviavam cartas com quadras chistosas pedinchando canjicas e doces às famílias, e a maioria delas atendiam, satisfeitas.
Embora ninguém deixasse de fazer a sua canjica, todas as casas mandavam e recebiam pratos desse acepipe, comparando e orgulhando-se de ser a sua a melhor preparada.
Nas festas íntimas cantavam-se músicas anônimas. Recordo-me dessa cantiga que ouvia nas noites de São João, em Salvador, e que encontrei depois registrada por J. Leite de Vasconcelos em Portugal:
Orvalheiras
Orvalheiras!
Viva o rancho
Das moças solteiras!
Orvalhadas
Orvalhadas
Viva o rancho
Das moças casadas!
Orvalhudas
Orvalhudas
Viva o rancho
Das moças viúvas!
Muito ao molde dos nossos avós, havia uma moda que também cantavam na Bahia, um tanto irreverente, porém ingênua como toda criação popular:
A ripinica
A ripinica
É São João
Vertendo na bica
Era a noite de São João a mais popular na Bahia, e a de Santo Antônio a que tinha ligações mais estreitas com a tradição católica. Tanto que, entre os festejos praticamente indispensáveis ao santo português figurava a novena, não só rezada nas igrejas como em muitas residências, acompanhada de coro e música.
São João representava o ponto culminante da trindade, caindo um pouco com São Pedro. Bem perto vinha se aproximando uma data tradicional, pomposamente louvada pelos baianos o Dois de Julho, a festa do Caboclo e da Independência.
(Guimarães, Reginaldo. "Os três santos de junho". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1958, 3º caderno, p.7)
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