18 de dezembro de 2006

Amigo secreto

Por Vicente Serejo

Não tenho mais dúvidas: na vida há sofrimentos antigos e modernos. Os velhos, dos tempos do medievo, chamaram de tortura. Os mais modernos, porque certamente mais sutis, tem vários nomes, inclusive Amigo Secreto. No fim, vos digo: se uma pobre vítima, num restaurante, cair bem do lado de uma daquelas mesas compridas, indicadas para as chamadas confraternizações natalinas, está frita. Em azeite fervente. Por esses dias é melhor não sair de casa. E, quanto mais freqüentado o restaurante, mas trepidante e insuportável será a sua noite.

Dou um exemplo. Outro dia, pouco precavido, e vivendo ainda os primeiros dias de dezembro, fui jantar com um amigo num daqueles restaurantes de Ponta Negra. É verdade que, ao entrar, notei as mesas compridas, mas não imaginei o que poderia acontecer. Sentamos do lado de uma delas, pequena, para quatro pessoas. O vinho estava fresco e os primeiros goles desciam bem. Talvez não tivesse o buquê que os nossos enólogos daqui certamente diriam ter 'algo frutado e bem marcante, tipo relva pisada por gazelas, úmidas das chuvas primaveris'.
E ficamos ali, pastorando nossas próprias cismas. Tocando essa vidinha de beira de rio e de mar, feitas das lembranças de ontem e dos planos para amanhã. Ora, somos uns cinqüentões acossados pelos anos num galope sem descanso. De repente, começaram a chegar moças saltitantes. Várias. Alegres, com aquela alegria da vida que nos jovens é sagração. A coisa parecia calma, mas a mesa logo ficou toda ocupada. Conversas animadas enchiam a noite, mas nada que ferisse o conforto do nosso peixe gralhado, indicado para hipertensos sedentários como nós.
De repente, uma delas levantou-se e anunciou num brado forte: Vai começar o amigo secreto! Tremi nas bases. Já tive experiências desastrosas, daí meus traumas sem cura. Basta dizer que uma vez perdi um ótimo aparelho de som porque o sorteio exigia como tarefa dançar na boquinha da garrafa. Quando vi a platéia e até uma máquina fotográfica, nem tentei. Deram três chances, como num leilão. Concederam um último desejo, como aos condenados à morte, mas não aceitei. E vi quando um dançarino exibido ganhou o som com seu rebolado erótico.
Daí pra frente, nunca mais. Nem por isso escapei do Amigo Secreto naquela noite. Enquanto se ouvia a descrição do sorteado, nem tanto. Mas quando cada moça abria seu presente, vinha uma explosão de gritos seguidos de pulinhos nervosos e de abraços cheios de euforia. Ninguém mais conseguiu conversar. Parecíamos os bobos de uma corte estrepitosa. Uns mímicos, balbuciando palavras como se tivéssemos algum pendor com a tal linguagem labial. Moças, rapazes, pratos com restos de comida, e uma pobre vítima com cara de chefe da tribo.
Pagamos a conta, rápido, e fomos jantar noutro lugar. Para não falar nas sessões-relâmpagos de parabéns. De vez em quando, apagavam tudo e a escuridão caía sobre todos e passava uma vela acesa espetada num bolo equilibrado nas mãos de um garçom. O 'parabéns-pra-você' soava quase sempre histriônico. Depois, como se não bastasse, umas palavras de ordem repetidas no ritmo forte das palmas. Tudo isso, leitor, é só para avisar: evite sair de casa nessas noites de dezembro. A menos que você seja o chefe. Aí, paciência. Só com a proteção de Deus.

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