7 de março de 2007

Vicente Serejo, Um cronista maior

por Marcos Ferreira
Escritor
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Caricatura: Túlio Ratto
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“O que me faltou não foi apenas não ter nascido alto e bonito. Foi também esse jeito ousado e romântico dos heróis da noite.”
(Vicente Serejo)

Nestas horas mortas de um domingo morto, Senhor Redator, numa janela aberta para um mar antigo, com os olhos calejados de longos silêncios e inomináveis ausências, um homem gordo e feio mira o espelho azul das águas. Aguarda, quem sabe, por aquela onda que lhe venha salvar da página branca de susto. Como no verso de Quintana. Não tem ele maiores glórias, diz-se apenas um lírico de alma imprestável para essas exigências do capital. Mas é também um espírito afeito às discussões de seu meio, um tipo casmurro e desgraçadamente atormentado por aquilo que poderia ter sido e que não foi — um poeta em seu desmantelo azul diante do mar. Usa uns óculos e uma barba à Jô Soares, fuma charutos cubanos e tem fumaças de fidalgo inglês. Um homem feio e gordo, Senhor Redator, vigia de um mar antigo e escravo de uma tira de jornal em que descreve estas novelas nada exemplares de nossa aldeia.

Chama-se Alberto Vicente Serejo Gomes. Nasceu em abril de 1951 na pequena ilha de Macau, Rio Grande do Norte, entre pitorescas salinas e poéticos moinhos de vento. É cronista por vocação e jornalista profissional desde os tempos da caverna. Já passou por todos os principais veículos de mídia impressa do Estado. Desempenhou as funções de repórter, editor, chefe de reportagem e editor geral. É professor de jornalismo da UFRN, membro da Academia Norte-rio-grandense de Lesmas, amigo do Príncipe Caramujo e cordial desafeto da Boneca de Pano. Um homem danado, Senhor Redator, com alma de Dom Quixote e biótipo de Sancho Pança. E, como todo gênio da arte-palavra, padece de elefantíase do ego e é craque no exercício da falsa modéstia. Talvez por isso seja ele tão combatido quanto festejado. Mas é natural que Serejo — que vive entre feras — sinta inevitável necessidade de também ser fera.

Porque a vida nestes subúrbios intelectuais é dificílima. Ainda mais para aqueles que tenham certa desenvoltura na arte da escrita. Escrever bem numa terra destas, povoada de canhestríssimas sumidades do pé redondo, é algo tão imperdoável quanto não ter nascido alto e bonito. Aqui ou você se rende ao estilo maria-vai-com-as-outras dos indivíduos sem pensamento próprio, ou cai em desgraça perante a crítica de gosto emprestado. Então Serejo, que não é santo nem demônio, é uma espécie de escritor maldito. Admira-me que o tenham aceito na Academia. Sobretudo por ser verdadeiramente um homem de letras. Pois não é nenhum segredo que a boa literatura sempre foi empecilho a quem deseje se tornar imortal. Mas o beletrista da Rua da Frente, que fala muitíssimo bem o complicado idioma dos picos e penhascos, conseguiu fazer-se respeitado (ou temido?) entre tantas e monumentais insignificâncias.

E para o desespero dessa risonha e risível mediocridade, Serejo está ao nível de nomes nacionais como Rubem Braga e Antônio Maria. Pratica uma literatura enxuta, sem ímpetos verborréicos nem barbarismos gramaticais. É a mais fulgurante estrela da crônica potiguar. Nunca em toda a histórica inexpressão literária deste Estado houve um cronista com tamanho senso artístico, com tal força criadora e precisão estilística. Nem mesmo figuras das mais evocadas entre as fabulações intelectuais da província, a exemplo de um Berilo Wanderley e de um Newton Navarro, lhe amarram as chuteiras. Apenas Dorian Jorge Freire (e isso mesmo naqueles tempos em que Dorian foi muito mais escritor do que jornalista) talvez lhe pudesse fazer frente. O resto são os falsos brilhantes produzidos pelo compadrio literário que tomou conta deste pobre Elefante sem vez e sem voz no rico panorama da literatura nacional.

Autor de várias centenas de crônicas que permeiam pelo menos duas décadas de colunismo diário, Serejo sempre escreveu com enorme abundância e publicou pouquíssimo. Até o momento, em sua diminuta bibliografia, constam apenas três livros publicados — Cena Urbana (1982), Cartas da Redinha (1984) e Canção da Noite Lilás (2000). Este último, com selo da Editora Lidador, do Rio, é composto de cem crônicas carinhosamente selecionadas pela escritora Marcia Carrilho e ilustradas pelo artista Mem de Sá. A caprichada edição da Lidador, que sequer chegou às livrarias, traz ainda um excelente prefácio do escritor e crítico de letras Silviano Santiago, além de orelhas assinadas pelo formidável romancista caicoense Nei Leandro de Castro. Um livro que se não nos redime dessa histórica penúria literária, ao menos atenua o vexame que vivemos em todos os gêneros de literatura desde o Brasil colônia.

À maneira de um ourives da palavra, Serejo alcança o difícil equilíbrio, a perfeita e perigosa fórmula que encerra, numa única expressão de arte, o erudito e o popular. É um feiticeiro, um bruxo, um Bilac da prosa medida. De tão regulares, de tão precisos e bem enredados, os seus parágrafos mais semelham estrofes. Sua fatura verbal deixa extravasar uma voltagem poética altíssima. Sua envolvente dialética, suas sentenças certeiras e seu obsessivo esmero na arquitetura da frase concisa o fazem um mestre do gênero. Doa a quem doer, Senhor Redator, Vicente Serejo é o grande nome da crônica rio-grandense-do-norte em todos os tempos. Não adianta negar, não adianta tentar escondê-lo sob falsas e despeitadas fugas de memória. Assim é querer tapar o sol com a peneira, é querer fazer de burro ou de cego todo um país. Porque Serejo, diria Shakespeare, é muito maior do que pode supor a nossa vã antipatia.

Canção da Noite Lilás, que se pode inserir, sem favor nenhum, entre as melhores publicações do gênero no Brasil, é uma dessas pequenas jóias que só um cronista maior como Serejo poderia ter forjado. “Raramente a língua portuguesa buscou se igualar com tanta mestria à palheta de um pintor”, observa Silviano Santiago em seu prefácio. E ouso afirmar que não fica nada a dever, por exemplo, a nenhum Homenzinho na Ventania, de Paulo Mendes Campos, ou, ainda, àquele Concerto para Corpo e Alma, do Rubem Alves. Duas obras de elevado quilate literário. Canção da Noite Lilás, portanto, é obra de escritor maduro, de um homem que atingiu a maioridade do seu ofício à custa de aturado e laborioso esforço. Como queria o mestre Rui Barbosa. Porque um grande estilo e um verdadeiro artista, Senhor Redator, não se forjam assim da noite para o dia. Mesmo que seja esta uma noite lilás e de belas canções.

Texto publicado na revista Papangu, 37ª edição, fevereiro de 2007.

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