24 de abril de 2007

Um malandro comedido

Foto: Hugo Macedo

Chico Buarque faz show no Teatro Guararapes, Centro de Convenção, em Recife.

ARTIGO

Lívio Oliveira

No espetáculo (conjunto da turnê, em três noites, realizada na capital pernambucana) que pretende ser uma fiel tradução do espírito carioca, o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda provou algumas características que vêm sendo observadas, já há algum tempo, pelo seu enorme público e pela crítica: é um artista extremamente sofisticado e elegante, buscando, ainda, novos e rigorosos experimentos, sutis e inusitados; porém, enfrentando certa crise no que diz respeito ao teor criativo de sua elaboração poética e dos conjuntos harmônico-melódicos de suas novas composições.

O show Carioca, que tive oportunidade de ver em Recife, no dia 20 de abril, explicita as deficiências já exibidas no seu último CD, que, curiosamente, não é, mas parece ser só de canções inéditas. Demonstra, em meio a arranjos sofisticadíssimos, criados e dirigidos pelo maestro Luiz Cláudio Ramos (arranjador do show e do CD), uma baixa temperatura musical que veio se refletir nas faixas do disco executadas no espetáculo, com algumas louváveis exceções.

Numa seqüência que raras vezes foi entrecortada por alguns de seus mais importantes clássicos - todos incorporados ao cancioneiro nacional - o artista mítico interpretou, do novo CD, todas as músicas: Subúrbio; Outros Sonhos; Ode aos Ratos (rap composto em parceria com Edu Lobo); Dura na Queda (já interpretada por Elza Soares); Porque Era Ela, Porque Era Eu; As Atrizes; Ela Faz Cinema; Bolero Blues; Renata Maria (parceria com Ivan Lins, já gravada por Leila Pinheiro); Leve; Sempre; Imagina (esta, um ponto mais alto, faixa já gravada por Tom Jobim, um dos compositores, e que tem elementos folclóricos que foram trabalhados por Câmara Cascudo - como a “Lua Cris‘‘ - segundo depoimento do próprio Chico em DVD recente, em que considera o folclorista potiguar como uma fonte de inspiração para a canção).

Tensão

A tensão, na noite em que tive oportunidade de assistir ao grande músico brasileiro, não se deveu somente às chuvas que alagaram a cidade do Recife e que provocaram um certo tumulto no trânsito até o Teatro Guararapes - Centro de Convenções - onde o concerto seria realizado. Ela existiu, também, devido à ansiedade que se assomava na esperança de se ouvir os belos standards de Chico.

No entanto, o cantor parecia não dar trégua, mantendo-se, quase que durante toda a primeira parte do show, no repertório do novo disco, nitidamente um dos mais fracos de sua extensa e fabulosa carreira. O comportado e morno repertório se repetia na postura elegante de Chico no palco. Elegante, extremamente quieto e recatado, quase sem movimentos e palavras (ensaiou alguns pouquíssimos elogios ao público pernambucano, que considerou muito “cantante‘‘), na leveza do dedilhar de seu violão (em momentos destacados partiu para o tamborim ou para o estranhíssimo kalimba, um instrumento africano de percussão que utilizou na interpretação da sensual Morena de Angola).

Aqui, deve-se fazer justiça. Mesmo com todos esses traços que caracterizaram o show de Recife (que já percorreu outras diversas capitais brasileiras), o carisma de Chico no palco se manteve inabalado. O cantor, na sua quietude e fleuma quase imperturbável, conseguiu emocionar pela sua própria presença, pela força de sua história, por sua personalidade e imagens indestrutíveis. Não vou falar aqui da estridência histérica de gritinhos femininos (e, pasmem, até mesmo de alguns marmanjos), ou da invasão do palco por algumas dessas figuras, mas quero firmar a convicção do imenso respeito que Chico Buarque de Hollanda recebeu da platéia pernambucana (com muitíssimos potiguares que ali estiveram), saudosos de sua presença por aquelas plagas, ausente que esteve por muitos anos.

Impecável

Deve-se também considerar que - do ponto de vista da técnica do espetáculo - o show de Chico foi impecável: horário respeitado (apesar das chuvas recifenses), iluminação perfeita (assinada por Maneco Quinderé), som com boa acústica distribuída no imenso teatro, além de um cenário muito bem elaborado (móbiles pendentes que simulavam a silhueta dos morros do Rio, em contraste com um satélite reluzente).

O conjunto técnico mais importante estava, evidentemente, na excelente banda que, além do maestro Luiz Cláudio Ramos, contou com as presenças fortes de João Rebouças (piano), Jorge Helder (contrabaixo), Marcelo Bernardes (flauta e sopros), Chico Batera (fantástico na percussão!), Bia Paes Leme (que, além dos teclados, fez uma afinada parceria com Chico Buarque nos vocais de Imagina) e o grande Wilson das Neves (que, largando a bateria - Chico o descreveu no palco como seu “baterista preferido‘‘- foi responsável por um dos pontos altos do show, cantando o maravilhoso samba Grande Hotel, de sua parceria com o “patrão‘‘, executando uma performance em que simulava “embaixadinhas‘‘ e toques futebolísticos de cabeça e ombro, envolvendo Chico e até lhe provocando uma certa descontração).

Quase no fim do show, como se tomado de sensibilidade e empatia com os que o assistiam, as grandes composições vieram em sua interpretação, para delícia de todos. Chico atendeu, surpreendentemente, a dois “bis‘‘, e passou a cantar pérolas como Quem te viu, quem te vê; Sem Compromisso; Deixa a Menina; João e Maria (num momento de arrebatamento do público). Noutros instantes, já havia cantado as boas Bye-bye, Brasil; A História de Lily Braun; Futuros Amantes; Morro Dois Irmãos (uma das canções mais explícitas quanto à temática carioca do show, apesar de não constar do último CD).

Uma impressão última que ficou do show de Chico no Teatro Guararapes é a de que o maior artista popular deste país mantém, mesmo que numa fase de entressafra criativa (que o malandro volte de vez!), o respeito, a permanente admiração e o afeto de seu público, ao qual dedicou uma das mais importantes obras musicais da história da MPB, apesar do excessivo comedimento atual.
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Texto publicado no Diário de Natal

Um comentário:

Moacy Cirne disse...

Um texto seguro e equilibrado: Lívio acertou em cheio. Parabéns. Um grande abraço.