3 de junho de 2007

Cascudo na Lei

Por Plínio Sanderson
Membro da Comissão de Cultura do Estado

A frase do Oscar Wilde: "toda arte é essencialmente inútil" é emblemática. Remete-nos a constatação de que a modernidade traz consigo o dilema do papel estatal e seu imbricamento com a Cultura e a Arte. A Cultura não mais como acessório supérfluo, mas alicerce na construção de qualquer sociedade.

Historicamente, a relação entre estado e cultura vai do mecenato clássico, numa cumplicidade assistencialista/ideológica; passando no início do século XIX para o patrocínio, consolidado em meados do XX com o marketing cultural, que fundiu interesses corporativos e mercadológicos. Recentemente, o estado oferece benefícios fiscais instituindo o "investimento incentivado" - através das Leis de Incentivos. A lógica do mercado deve substituir a política pública? A questão é: como se dá a transferência dos recursos públicos? O Estado deve ser isentado de quais obrigações?

No atual contexto, as Leis de incentivo à cultura em todos os níveis federativos carecem de revisão. A Lei estadual Câmara Cascudo não foge a regra, pois, não democratiza o acesso à produção, a distribuição ou mesmo o consumo dos projetos culturais. A Lei Nº. 7.799 entre 2000 e 2006 abdicou em forma de renúncia quase 20 milhões, sem, no entanto, fomentar a produção artística e nem engendrar um azimute para cultura no RN.

Pontos de discrepâncias e incongruências...

As competências concorrentes, com projetos semelhantes, por exemplo: os festivais de rock e/ou de músicas independentes, as indústrias carnavalesca ou de autos, os festivais gastronômicos. Tais projetos perfazem mais da metade de toda renúncia anual. O pior, é que estes terminam facultando uma de reserva de mercado e a perpetuação dos projetos. Como decorrência, a monopolização na captação de recursos. Isso vai de encontro à essência da Lei que é estimular a produção artística e não criar projetos cativos ou dependentes da famigerada.

A multiplicidade de projetos por proponente num mesmo ano fiscal. A concentração de projetos na capital, sem considerar a interiorização da Cultura. Projetos com duplicidade de Leis. Várias instituições insistem em usar como fundo mantenedor a Lei. A falta de limite nos valores, há projetos de meros eventos (pagos) que custam, pasmem, mais de R$ 500.000,00. Faz-se necessário criar tetos, exemplo: grandes projetos em até R$ 200.000,00, médios até R$ 100.000,00 e pequenos em até R$ 50.000,00. Obscura é a polêmica se instituições governamentais podem participar do processo? A disputa entre a chancela oficial e artistas não seria capciosa, injusta e desigual?

As Leis constituem um diálogo entre o público e o privado, onde os produtores são elos importantes. Entretanto, há uma proeminência destes em detrimento do artista ou do próprio produto. Nos custos dos projetos a rubrica de produção (pré e pós), coordenação, elaboração, captação entre outros, são superiores ao que os artistas recebem para executar o espetáculo. Tem projetos que 80% do valor fica na mão (ou nos bolsos) de uma pessoa, ou grupos que se revezam nos cargos em projetos simultâneos.

A Lei se configura um anacrônico retorno ao clássico mecenato, onde meia dúzia de empresas dão as cartas, uma benesse conferida ao setor privado (e oligoprodutores) como incentivo à cultura. Quantas empresas "patrocinam" cultura por entender os benefícios do marketing e investimento social/privado que obtêm com projetos culturais ou por simples motivação financeira?

A verba que viabiliza (80%) a realização do projeto é oriunda do erário. A contrapartida da empresa é uma falácia. O ganho de imagem através da divulgação na mídia é realidade inconteste. Uma empresa consegue retorno multiplicado como ressarcimento do "valor investido", os parcos 20% do total. Entretanto, a grande maioria dos projetos se caracteriza como efêmeros eventos de cunho meramente lucrativo (entrada paga, camiseta, pulseiras). A participação privada sai gratuita e o contribuinte comum não tem condições financeiras que lhe permita pagar para assistir, tendo sido ele em última instância, quem financiou.

O estado poderia aplicar o valor dos incentivos diretamente? É legítimo o governo interferi ou não? Um estado interventor, que presta serviços culturais, ou um estado regulador, que planeja e financia ações delineando o caminho a ser seguido pela iniciativa privada sob influências de mercados?

Sepulcral é a ausência de política cultural no estado. Nada insólito, a primeira Lei de incentivo à produção intelectual da República eclodiu aqui no Rio Grande do Norte (1900), no governo do mecenas Albero Maranhão, sob o auspício do mestre Henrique Castriciano. A Lei Cascudo deveria ser um veículo com o qual o estado pretende atingir um alvo. A seleção dos projetos paradigma para atingir objetivos: observar a excelência e a relevância da proposta; analisar o benefício cultural de sua realização; estimular projetos estruturantes, que primem pela inclusão sóciocultural; priorizar projetos que ressaltem a identidade e/ou o pertencimento cultural com o imaginário do estado.

Falta cultura para transformar a estrutura! Cabe a mudança da Lei e a implementação de uma prática que venha tornar-se instrumento eficaz de legitimação do estado, mediante à globalização que incide avassaladora, reelaborando tradições e lugares. Ao invés de artes expressivas, arremedos reprodutivos; no viés da arte-criação, a consagração do fútil. Como fica a produção artística experimental ou não-comercial? Essencial é instituir o "Fundo de Cultura" para contemplar as artes não convencionais. Enquanto isso, urge a normatização da Lei vigente, prevista na secção VII, artigo 27, antes que o urubu venha bicar, ainda mais, a cultura nessas plagas cascudianas.

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