12 de fevereiro de 2008

O Beco da Lama em 1501

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Ilustração e texto: Franklin Serrão
http://esquinadobeco.blogspot.com/

Antes dos poetas, antes das hebdômadas hostis de cada esquina, do lendário Câmara Cascudo, o Beco da Lama já existia. Noutra geografia, mas existia.

Sua vegetação era rasteira. Existiam aguapés secos, maceiós desgovernados.

Um gramado de restinga aprisionava a areia ao solo.

Assim, foi o beco um dia. A areia fina, grãos polidos pelo vento, cartão postal que impressionava olhos desprotegidos. Era terra de lobos vermelhos, leões de todas as cores e tamanhos, veados voadores, peixes que andavam e cavalos que nadavam.

Lembro-me da primeira vez. Do dia que venci todos os obstáculos primários e caminhei pelas ruas do Beco. Foi enfiando os pés nas areias fofas e quentes da praia que derrotei as primeiras léguas. Driblei tanto a fauna faminta quanto a flora melindrosa.

Foi chegar ao Beco pela primeira vez e ver sua alegria incomum, sua rotina que teima em surpreender.

À meia légua da desembocadura do grande rio, vi um grupo de mulheres jovens. Do estirâncio, elas observavam a geografia estrangeira que galopava lenta pela praia.

Em minha direção, resolveram caminhar. Rapidamente. Um passo majestoso, curto, ligeiro. Caminhavam ansiosamente felizes. Simplesmente caminhavam. Felizes. Assim, o grupo chegou bem próximo de mim.

Pareciam comentar sobre o achado.

Começaram a tocar-me. Seus braços e ombros esbeltos, alegremente, estudavam milímetro por milímetro do meu corpo.

Fiquei corado de vergonha. Procurei afastar-me discretamente. Não cheirava bem. Foi inútil: antes de somar alguns passos, elas me cercaram e começaram a tocar-me novamente. Sorrisos largos, seus pudores nus. Um carrossel holandês de belas mulheres girava embriago, fazia o meu sangue ferver. Elas eram lindas, seus corpos perfeitos. Pareciam amigáveis e não ligaram para o meu aspecto asqueroso de rato de navio.

Pensei ser a visão do paraíso. Um paraíso jamais imaginado. As conseqüências disso, uma ereção monumental.

Medo, euforia, prazer, dúvida? Não sei ao certo, só me lembro de salivar. Salivar muito.

Meus cabelos crespos aprisionavam suas mãos. E elas puxavam, e doía. Tocavam meus pudores, amassavam meu órgão ferido de tanta manipulação. Antes de tudo escurecer, eu apenas desfrutava, sem nada expressar.

Acordei amarrado pela cintura. Senti nos lábios um gosto adocicado de uma bebida lombrosa, misteriosa, amarga, que embaçava meus olhos.

Aos poucos, a embriaguês transformou-se em lucidez gostosa. Meu corpo estava
relaxado. Apesar do galo na cabeça dormente, meu corpo estava relaxado.

Eu podia ver mulheres e homens consumindo, até a exaustão, o precioso
néctar. As mulheres serviam-no aos homens, que bebiam e dançam. Uma
multidão.

Pintados, emplumados, com instrumentos de sons, enfeitados. Produziam um ritmo dançado por toda a tribo. Percussão e harmonia.

Corpos cobertos por penas brancas e cocares de penas vermelhas puxavam fila indiana. Fila que se estendia por centenas de metros. Ela dava voltas no entorno da aldeia. Num mesmo ritmo. Uma marcha poderosa.

As mulheres cantavam e beberam por último. Pintaram seus corpos nus, ostentaram adereços emplumados e saíram também como em procissão. A noite era toda de festa.

Vi um homem enorme que segurava um pau igualmente grande. Estendido por trás da cabeça, em posição de ataque. Fiquei sóbrio nessa hora. A corda amarrada à minha cintura nua, como um cabo de guerra, roubava-me o fôlego.

Desta vez, o tacape foi mortal.

Soube, depois, que comeram minha carne moqueada junto a ervas. Mulheres fizeram papa de mandioca, banquete de ritual.

Fui devorado para ser eterno entre eles. Para ser um deles. E acho isso bom.

Sob uma única condição, pesa pequeno fardo: em troca, uma maldição guia meu espírito pelos tempos, não tenho escolha: sempre quero voltar e tem que ser para o mesmo lugar do ritual: todas as vezes, nascer, viver e morrer no Beco da Lama.

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