18 de setembro de 2008

Uma Metáfora da Incomunicabilidade

ARTIGO

por Lívio Oliveira

Ozualdo Candeias, falecido em fevereiro de 2007, foi um importante cineasta do bairro paulistano da Boca do Lixo – onde é farta a prostituição pobre, que convive, cotidiana e curiosamente, com a existência de uma série de pequenos estúdios técnicos de cinema, onde se realizaram diversas películas do movimento a que se intitulou Cinema Marginal, com produção prolífica desde os anos sessenta.

Foi como Diretor que Candeias conseguiu contar, em seu profundo filme A margem (que para alguns analistas é um precursor do movimento), uma fábula da solidão em meio à grandiosidade da metrópole, sintetizada em arrabaldes, subúrbios, como aquele em que se situava o próprio estúdio do cineasta. Numa obra que explora os efeitos mais profundos do “estar-só” diante do mundo, surgem metáforas que buscam as explicações possíveis para as tormentas da alma perdida entre as impossibilidades do ser ilhado.

O filme bem poderia ser intitulado, pelo já exposto, A ilha, inclusive porque todos os elementos – obviamente também o rio e a ponte, originariamente atravessados pelos personagens principais, espécie de quarteto ensandecido e errante – terminam por nos trazer a idéia de que a metrópole (no caso, a cidade de São Paulo) é, em si própria, uma ilha. E projeta esse pensamento a ponto de convencer que o homem, ele mesmo, é insulado no seu interior povoado de dúvidas e medos e em suas respostas irrealizadas diante de uma busca eterna da felicidade e do amor.

Ninguém – nenhum dos personagens – consegue produzir um diálogo consistente, racional e conclusivo no filme. Todos os diálogos são incompletos, imperfeitos, desviados do centro íntimo do assunto original, levando, quase sempre, pela confusão e balbúrdia criadas em torno das falas e dos comportamentos disformes, egoísticos e sem regras, à discórdia e à tragédia. A comunicação é, no fim de todas as contas, uma impossibilidade. Um louco, um aparente burguês, uma ingênua e sonhadora jovem, uma puta: Há um jogo evidente entre quatro personagens em que o roteiro se fulcra – que não se entendem e não estendem um ao outro –, através do qual se criam muralhas imaginárias, permitindo-se um aprofundamento do abismo invisível, cada vez mais amplo, que separa um indivíduo de seu “semelhante”.

A impressão que se colhe é a de que essa incomunicabilidade, num contexto e através de uma visão filosófica que possui traços nitidamente existencialistas e, a um certo ponto, niilistas, é a própria e acabada tragédia humana. Ali, onde não se consegue saber o verdadeiro valor de uma flor – colhida em meio ao lixo –, melhor destruí-la ou tomá-la para si. A vida, nessa realidade cinza, é desconstruída desde seu início. Em tudo se inaugura uma descrença prévia e é aí que se inicia a batalha íntima, o conflito dos espíritos e, numa análise simbólica radical, a guerra entre povos, com a destruição mesma da idéia de civilização. Surgem perguntas: De que adianta tanta tecnologia, tantas inovações, tantas riquezas, patenteadas pela enormidade da cidade central, metrópole crescida? Onde está mesmo a civilização que se quer afirmar como presente? Ora, tudo se esvai no ar, diante da solidão profunda dos homens e mulheres que vivem sob tal realidade opressiva! O crescimento e desenvolvimento urbano, que deveriam incluir a todos, terminam por se transformar no mais cabal sistema de exclusão.

A religião é, no filme, uma outra impossibilidade. É mais uma tentativa, em vão, da salvação do homem. Uma igreja, incrustada em meio ao mato e aos detritos, com um padre, ou um santo mesmo (seja lá como se queira representar o personagem surgido inusitadamente), que dorme e acorda num completo alheamento e que se comporta, num momento posterior, mais como um agente burocrático da fé do que um condutor das almas ao encontro de um Deus que se idealiza e se busca, demonstra a todos que ali se encontra um abismo que cresce, mais uma impossibilidade, ampliando e corroborando a própria idéia de morte, que, por si só, já resume toda a desesperança humana.

A cena de um casamento impossível, em que uma mulher negra rouba um vestido branquíssimo e se veste para uma cerimônia ilusória, em meio a toda a sujeira ao seu redor, é a marca exata dessa quebra ou inocorrência de liames, de vínculos de humanidade entre os personagens tão díspares, tão distintos, tão exilados de si, e entre si.

Apesar de tudo, teimam os personagens em permanecer juntos, não se sabendo em busca de qual catástrofe final (ou não?!). Atravessam a ponte unidos e, ainda assim, ingressam no mesmo barco, que segue para o meio do rio (aqui o filme parece fazer uma alusão ao importante Limite, de Mário Peixoto), sem um destino exato, somente a dúvida, a incerteza, a exercitada desilusão.
Talvez o que Candeias tenha explicitado, em A margem, seja a própria demonstração do mais cabal fracasso do homem sobre a terra, o que inclui todas as raças, os credos, as classes sociais (o filme, a meu ver, transcende esse aspecto, o do conflito de classes, indo além, ao conflito íntimo humano mesmo, apesar da análise de muitos que o consideram uma película eminentemente de cunho social-político).

Esse fracasso absurdo, contextualizado em A margem, é, definitivamente, o de não ter chegado a humanidade a conhecer a si mesma.

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