16 de janeiro de 2009

O Poema-Processo precisa mudar de gênero?

ARTIGO

Nelson Patriota
Jornalista

Passados quarenta anos do lançamento do poema/processo, no bojo das idéias reformistas do concretismo, esse movimento tem um acerto a fazer com os tempos de hoje: dizer a que veio. Seu descarte da palavra, apregoado em seu octálogo de 1967, e ratificado por diversos de seus membros, continua em questionamento. Já se pode dizer, contudo, que o poema/processo (o que quer que isso signifique) virou história. Autodenominado último movimento de vanguarda (sic), talvez devido à repulsa de seus integrantes à mudança, tem a difícil missão de abrir espaço para o novo sem recuar de suas próprias premissas.

É tempo de se perguntar então qual o lugar do poema/processo na cultura brasileira. E uma das respostas mais sugestivas suscitadas por essa pergunta veio do poeta Alexei Bueno. Em sua “Uma história da poesia brasileira”, (2007), ele o situa no campo das artes visuais, não da literatura. A afirmação, perspicaz, é, no entanto, plausível, já que os próprios teóricos daquele movimento fazem alarde da obsolescência da palavra, colocando, em seu lugar, conceitos abstratos como processos, concretudes e estruturas em função do processo, sem se dar ao trabalho de explicá-los. Ora, a literatura é o domínio da palavra. Assim, onde esta está banida, aquela não pode prosperar.

O octálogo fundador do poema/processo é seguramente um documento curioso, enquanto proposta cultural, porque ao mesmo tempo em que repudia a palavra em nome de algo que provou não substituí-la, tenta convocar para as suas fileiras novidades musicais, como a música dos Beatles, sobre a qual afirma que qualquer uma de suas músicas contém mais informação estética para o homem de hoje do que certas músicas ditas clássicas (Beethoven, Wagner, Villa-lobos (sic), incorrendo no equívoco de confundir música erudita – sinfonia, ópera etc. – com música popular.

O ponto fraco do poema/processo reside na baixa densidade dos seus preceitos teóricos (aí incluídos os do abstrato e evasivo Wladimir Dias-Pino, com quem tentamos em vão dialogar sobre o p/p, anos passados). Tomemos, por exemplo, a idéia de um “processo” do poema, ou seja, de uma possibilidade de alterá-lo indefinidamente, tarefa que tanto pode ser executada por seu autor, como por outras pessoas – imaginemos, neste caso, um público participativo e capaz de inserir alterações (recriações) no trabalho original. Ora, as artes plásticas já usam esse procedimento há tempos. A japonesa Yoko Ono seduziu o ex-beatle John Lennon justamente com uma instalação que exigiu a participação do artista inglês.

Na música, a idéia de transformação está presente nas variações (pensemos nas Variações sobre um tema de Diabelli, desse Beethoven cujas obras, para os teóricos do p/p, estão abaixo de uma canção dos Beatles; ou nas Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach). Na poesia, existem paródias, paráfrases, versões etc. Lembremos as inúmeras traduções do “Soneto” de Arvers, ou a “Paráfrase de Ronsard”, de Manuel Bandeira, ou a “Chanson d’Automne”, de Verlaine, que mereceu do poeta Luís Carlos Guimarães três variações, outras tantas de Nei Leandro de Castro, Celso da Silveira, entre outros. Nenhuma dessas obras está interditada a novas traduções, paráfrases, variações etc.

A verdade é que a simpática idéia, defendida pelo professor Marcos Silva na revista Brouhaha (ano 3, n. 10, setembro/outubro de 2007), de imaginar que o p/p descobrisse em cada pessoa o artista que lhe jaz oculto, não se mostrou factível, talvez por uma razão muito simples: nem todo mundo tem, oculto em si, um artista em potencial. Imaginemos o contrário: que registro guarda a história, nesses quarenta anos, de eventos coletivos de produção maciça de poemas processos?

O já citado documento de 1967, como se pode ler no número da referida Brouhaha comemorativa dos 40 anos do p/p, (relativa, portanto, ao ano de 2007), pode-se ler, entre outras coisas, que ele tenta estabelecer laços de identidade com valores literários de notória filiação vanguardista, como a poesia de Cummings, a prosa de Joyce, o cinema de Godard, entre outros. Em termos nacionais, invoca o surgimento de novos processos poéticos (sem jamais explicar o que os diferencia dos “velhos processos”) de Wladimir Dias-Pino, Décio Pignatari e Augusto de Campos. A ausência do poeta Jorge Fernandes como vanguardista local (posto que o documento é assinado por norte-rio-grandenses) é, digamos, estranha. Será que Jorge não cultivou suficientemente os novos processos poéticos, tão incensados no movimento? E a prosa de Guimarães Rosa, não foi suficientemente radical para perfilá-lo ao lado de um Joyce ou mesmo de um Décio?

Como, após o boom de 67 ocorreu, cinco anos depois, uma “parada tática” que parece durar até hoje, o poema/processo não sofreu uma revisão por parte de seus criadores. E só aqui e ali um ou outro integrante se aventura a encarar as questões pendentes ou mal resolvidas, deixadas na esteira da “parada tática”. Por exemplo, a questão Cascudo. O próprio Moacy Cirne, um decano do p/p, rompeu o silêncio que cercava a questão há 40 anos e num tardio, corajoso artigo reconhece dois equívocos: o primeiro, ter negligenciado Cascudo, colocando-o à margem das preocupações do movimento que desencadeou o p/p.; o segundo, foi não procurá-lo, não tentar o diálogo com o mestre. E esse segundo equívoco é particularmente incômodo para Cirne porque ele acredita hoje, que “o monumento-Cascudo aceitaria dialogar com o poema/processo”. Será? Mas como? Antes ou depois do alardeado projeto de queimar livros de Cascudo?

O poema/processo teve o mérito de reunir um grupo de artistas que, ao atingir a vida adulta, se emanciparam de suas limitações artísticas e encontraram expressão em diversas outras formas de arte. Pensemos em Nei Leandro, Dailor Varela, Jarbas Martins e Moacy Cirne (poesia), em Marcos Silva (artes plásticas, literatura e docência universitária), em Anchieta Fernandes (cinema e pesquisa), em Falves Silva e J. Medeiros (artes plásticas).

É tempo, então, de o poema/processo fazer um mea culpa e reconhecer suas limitações e seus erros, ao invés de se limitar a exaltar seus méritos, seus feitos, e seu caráter pétreo, que encobre a idéia de que a idéia de vanguarda morreu com ele, ou que continua vivo graças a ele. É uma aporia que combina com os teoremas finisseculares de um Fukuyama, por exemplo, para quem a história acabou. Não combina com a de criação artística.

A sugestão dada por Bueno pode ser um caminho nessa direção. Talvez seja chegada a hora de o quarentão poema/processo mudar de gênero e trocar sua indumentária literária por vestes mais vaporosas, mais próprias às galerias de arte, para onde deve se mudar com armas e bagagens. A lustrosa colagem que adorna a frente da contracapa da citada Brouhaha é um bom exemplo do potencial artístico que o poema/processo apresenta como ramo das artes plásticas.

Um comentário:

Moacy Cirne disse...

Cara, ao adicioná-lo na minha "lista de blogues", no Balaio, imediatamente descobri que tocê tinha republicado esse artigo do Nelson. Decerto, não concordo com uma uma grande parte do que ele afirma, mas essa é outra discussão. Que, aliás, já se fazia presente em dezembro de 67 (na ESDI, com Julio Plaza entre os debatedores) e janeiro de 68, quando fizemos o segundo debate no Rio, com a presença de Ferreira Gullar. Um abraço.