13 de julho de 2009

A chuva que acordou o dia

ARTIGO

Eduardo Alexandre

A chuva que acordou o dia transportou-me para tempos distantes, anos 60, no Tirol da minha infância.

O cheiro da mata chegando, o pé do morro lavado de suas guabirobas suculentas e deliciosas; o medo da cobra-de-veado, a suaçubóia que, se não era venenosa como as corais perigosas que habitavam debaixo das folhas caídas dos cajueiros, “matava de arrocho, enrolando-se nas pessoas até sufocá-las”.

Quanto medo das cobras gigantes dos morros do Tirol!

O desejo de degustar a guabiroba do “Pé-do-morro”, porém, era maior. Como maior era o desejo da boca em lábios preguentos de sumo de maçaranduba.

Maior que o medo da suaçubóia - termo aprendido depois, nas salas de aula do Marista; maior que os sustos causados pela mimética cobra-cipó; maior que medo da “aleijante cipoada do rabo do camaleão”.

Meninos, juntávamos nossos cachorros e, enganando o balaço dos fuzis que vinha do Dezesseis Erre-i treinando pontaria, aventurávamo-nos pelas trilhas que nos levariam para Barreira d’Água com seu encantador solo esculpido pela natureza das chuvas, os nossos “cânions”, depois levados pela ganância da construção civil. Solo a guardar água limpa e “saborosa”, bebida com a ajuda das mãos na sofreguidão do cansaço de subidas e descidas de dunas escaldantes.

O riozinho a formar-se ao pé das barreiras e a “encher” o mar Atlântico com suas poucas águas era uma fantasia real. “Um quê a mais” no meio daquela “selva”.

Os cajus do morro do Careca, por trás do quartel; os sagüis a nos indicar o cambuizeiro doce; os pequenos bem-te-vis dando surras em gaviões em fugas desesperadas; a raposa fugindo ao inaudível som emitido; as brigas de morte das cobras com os teiuaçus, “salvos pela mordida no pé de pinhão”, tudo isso era íntimo da infância do Tirol.

Nas cercanias, as vacas pastavam e as borboletas, amarelo/pálidas como chananas, chegavam também teimosas com o calor das manhãs.

A pista, imensa nesga preta de asfalto deixada pelos americanos quando da guerra, era limite de estripulias infantis.

Do lado de lá, a Praça Augusto Leite, pobre, em meio a um barreiro onde os campos de pelada surgiam destocando moitas teimosas a atrair saúvas “que acabariam com a nação se não acabássemos com elas”.

Do lado de cá, o reino de Dudé, filho de Seu Fausto, dono da vacaria - na garupa do jumento aparecido ou no lombo do cavalo do cercado, dava o tom da reação contra a “tropa” que ousava cruzar a pista, vinda da Augusto Leite.

A pelada dizia quem era melhor. Mas os socos e arranca-rabos por vezes aconteciam, decidindo, de vez, todas as pendengas.

Debaixo do juazeiro limpo, sem espinhos, defronte de sua casa, Dudé comandava a “tropa de cá” equilibrando-se pela mão esquerda sob a perna chocha, encolhida pela paralisia infantil, para não despencar. Coisa de “quem havia chupado manga depois do leite” ou “tomado banho depois da feijoada”.

Do morro, descia Carioca, com seu balaio de mangas e cajus, pitombas, homem misterioso, de pouca conversa, senhor de todos os segredos do Morro do Roncador, a prenunciar os tremores de terra que, diziam, deles o Brasil estava livre, pois sim! Morro do Roncador! Por que haveria de roncar um morro por trás das poucas casas do Tirol? Acho que nem Carioca sabia, ele “que morava há duzentos anos” num sítio entre os morros que nos levavam à Barreira Roxa, praia de pescarias de bons xaréus, pampos, barbudinhos, fartos antes que o barulho da cidade e sua sujeira os afugentassem para longe.

Dali, vi Natal deixar para trás a corrente. Esta que era limite da cidade e que, depois, trouxe a fábrica da Guararapes de Seu Nevaldo, o homem que iniciara com duas máquinas de costura o seu império e que viera para escrever a história do desenvolvimento da cidade, sucesso hoje desaguado no mesmo local, chamado “Me Dei Mal” pela população jovem que não viveu esses tempos.

Tirol que não assistiu às contendas de Luís Tavares contra os gringos insolentes da guerra, mas que lhe deu guarida nos seus últimos dias de tranqüilidade e bons exemplos. Tirol de Berilo Wanderley e dos bondes que traziam frescas suas crônicas para a Hemetério Fernandes, rua que me trouxe as primeiras luzes pelas mãos de Dona Adelaide, a parteira da cidade. Tirol do rela-bucho com as domésticas da Lagoa Manoel Felipe; do Aéro do apaixonado getulista Boquinha; do América de Maria Creuza e dos grandes carnavais; Tirol da AABB aberta não só a bancários; Tirol que se deixou seduzir pelo comércio.

Tirol de quantos nomes?

Tirol de tanta gente, de tanta paisagem humana e boa que não cabe enumerar numa crônica amanhecida de uma nuvem que só trouxe borboletas amarelo/pálidas como as teimosas chananas e as guabirobas de saudade, doces como o amarelo dos cambuís de suas dunas hoje encobertas pelo concreto do progresso que as invade, levando ternas virgindades de antigamente.

Saudade “grudenta” como o sumo de maçarandubas de chuvas outrora caídas.

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