25 de setembro de 2006

MARCOS FERREIRA: Um Operário das Letras

Por Alexandro Gurgel
Caricatura: Túlio Ratto

Considerado por alguns da cena literária potiguar e pela imprensa de vanguarda como o “Machado de Assis mossoroense” (apenas Foice de Manuel, rebate ele próprio), o escritor Marcos Ferreira, trinta e seis anos, é um intelectual autodidata que vem se firmando pela seriedade e consciência artística com que desempenha o seu papel de homem de letras.
Oriundo de família pobre, morando sempre na periferia, o jovem literato teve uma infância inculta, longe da escola e dos estudos: “Lá em casa não havia livros, nunca tivemos uma estante com livros, nem mesmo tenho notícia de que alguém possuísse tal coisa naquele subúrbio miserável em que vivíamos”.
Marcos só descobriu o prazer de ler aos onze anos de idade, mas problemas econômicos fizeram-no labutar muito cedo, começando como ajudante de sapateiro na mesma sapataria em que o pai trabalhou durante vários anos.
Como vendedor de porta em porta, oferecia redes, colchas de cama, cadeiras de plástico e vasilhas de alumínio pelos arrebaldes de Mossoró. Também negociou com perfumes, desodorantes, batons, cremes de pele, sabonetes, shampoos, rímeis e esmaltes de unha: “Surgiu uma oportunidade na área de cosméticos e passei a vender produtos da Avon. Mas aí tomei uns calotes e arrepiei carreira do negócio”, diz a certa altura da entrevista.
Após isso, foi ser vigilante de rua, com direito a uma indumentária completa — apito, cassetete e um quepe azul-marinho. Nesse período “pré-militar”, conheceu o advogado e violeiro Apolônio Cardoso, que contribuiu para o seu ingresso como revisor de textos num periódico local. Por redigir muito bem, logo lhe foi entregue a editoria de cultura do veículo, mas divergências com o responsável pela área financeira da empresa culminaram na demissão do escritor.
Hábil com as palavras e de uma ironia às vezes cáustica, ele comenta a sua experiência no jornalismo mossoroense: “Duas coisas muito importantes aconteceram na minha vida de trabalho: uma foi ter entrado para a imprensa, a outra foi ter saído dela”.
Hoje Marcos Ferreira é funcionário público do município, lotado na novíssima Biblioteca Municipal Ney Pontes Duarte. Publicou dois livros de poesias: o primeiro, em 1996, chama-se Um Poema de Presente. Em 1999, lançou a segunda obra, Encantamento. Ambos pelo selo da editora Coleção Mossoroense.
A exemplo de muitos autores, Marcos tem uma ativa participação em concursos de prosa e poesia no Estado e ao longo do País, tendo seus textos sido premiados ou distinguidos com menções honrosas em quase todos os eventos literários em que concorreu. Conhecendo-lhe o estilo peculiar de escrita, o poeta Aluísio Barros, professor de literatura brasileira da Uern, assim se expressou: “Marcos Ferreira sabe captar muito bem a essência do não-dito que implora para ser palavra”.
Já o crítico e escritor José Nicodemos, em sua coluna literária no Jornal de Fato, edição do último dia 6 de junho, deu o seguinte depoimento sobre a literatura de ficção do nosso entrevistado:
“Venho de ler os originais do livro de contos do Marcos Ferreira, Grosso Calibre, e apresso-me em dizer que se trata de uma obra que deve ser publicada. Contos bem bolados. Perfeita armação interna, com personagens se movendo num ritmo temporal coerente, tanto o tempo do autor quanto o tempo da narrativa. Enche os olhos o estilo gramatical do Marcos Ferreira, a quem não falta, numa combinação admirável, o estilo de expressão. Eis aí um contista senhor dos segredos da ficção”.
Nesta entrevista, Marcos nos fala de sua vida, literatura, jornalismo, projetos de publicação, etc. Ele abriu o verbo e apontou sua metralhadora giratória em todas as direções, fazendo um amplo e contundente exame sobre vários aspectos da vida cultural do Estado. Acompanhe a história e o pensamento desse operário das letras, que também se autodefine como um escritor mundialmente desconhecido.

Como você se apresentaria ao leitor? Quais as suas origens, os livros lançados? Quais as suas alegrias nesse ramo de arte?
A minha história é vulgar, diria Nelson. Mas não sei fazer canção, muito menos cantar. Nasci em Mossoró, Rio Grande do Norte, aos 10 de abril de 1970. Venho de origem muito humilde e sou o primogênito de uma prole de onze irmãos, dos quais sobreviveram nove. Era meu pai o sapateiro Vicente Ferreira de Souza, morto em setembro do ano atrasado. Minha mãe, que atualmente está com cinqüenta e sete anos, é a dona-de-casa Marilda Pereira de Souza. Tenho duas filhas, Brenda e Bianca, de oito e dois anos, e sou esposo de Beatriz, que me seduziu uma noites dessas quando eu bancava o boêmio com um copo de refrigerante num bar da cidade. Por mera precipitação e falta de autocrítica, cometi o irremediável crime de haver publicado dois volumes de pretensa poesia. O primeiro, que chamo de meu livro de remorso, veio a lume em 1996. Três anos depois, um tanto menos leviano e sem maiores expectativas de aplauso, dei à luz um segundo livro de versos, de onde talvez se possa aproveitar, nos dias presentes, não mais do que cinco ou seis páginas.

Mas não é bem essa a opinião de muita gente que lê sua poesia. O poeta cearense Caio César Muniz, por exemplo, declarou: “Marcos Ferreira é o maior poeta brasileiro vivo na atualidade”.
Ora, se o maior é desse tamanho, imagine o menor. Muniz, como disse muito bem você, é um poeta. Um rapaz de grande valor, um sujeito autêntico, uma excelente figura humana, mas um tipo passionalíssimo, dono de um coração enorme. E ninguém domina um coração de poeta. Aproveito a ocasião para dizer que nenhum filho desta terra contribui mais do que ele para o redescobrimento da poesia no País de Mossoró. Não sei o que a Câmara de Vereadores está esperando para conceder-lhe o tão merecido título de cidadão mossoroense.

E quanto aos prêmios e certificados de honra ao mérito que você já conquistou? Não seriam uma comprovação da boa qualidade dos seus trabalhos?
O que acontece é que tenho me esforçado no sentido de me reabilitar perante a comunidade intelectual deste país. Mesmo assim, na quase totalidade dos concursos aos quais concorri, só conquistei mesmo foi alguns pedaços de cartolina para emoldurar e pôr na parede, pois o dinheiro de verdade pingou na conta de gente outra. Todavia, por algum progresso em minha escrita ou por mera distração da banca examinadora, fui distinguido com menções honrosas em alguns concursos de razoável importância. Entre estes, o Câmara Cascudo de Prosa, realizado pela Fundação Capitania das Artes, em Natal, onde recebi menção honrosa em duas oportunidades. Além-fronteiras potiguares, cito o Prêmio Escriba de Poesia (também em duas edições), promovido pela prefeitura de Piracicaba, São Paulo. Em 2004, com um livro de poemas ainda inédito, me deram outro pedaço de cartolina por ocasião dos Prêmios Literários Cidade do Recife. Mais recentemente, com um volume de contos também inéditos, fui finalista no Prêmio Sesc de Literatura, realizado pelo Sesc nacional em parceria com a editora Record, quando concorreram 545 autores de todo o País. No mais, repito, sou um escritor mundialmente desconhecido, um literato de menor estatura, porém consciente de suas próprias limitações e deficiências. Marcam até aqui o meu desimportante currículo estas mínimas alegrias e pequenas glórias que certa falta de pudor me permitiu narrar. Em defesa própria, valho-me destes versos do português Bocage: “Incultas produções da mocidade /Exponho a vossos olhos, ó leitores. /Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, /Que elas buscam piedade e não louvores.”

Conte-nos um pouco sobre a sua infância, sobre seu ingresso nos estudos... Você foi criado num ambiente favorável ao contato com a literatura? Em que fase de sua vida você despertou para o mundo dos livros?
Passei minha primeira e segunda infância numa casinhola de pau-a-pique situada no limite entre a periferia e a zona rural deste município. Aliás, minha vida toda eu só morei no centro, mas no centro da periferia, esteja claro, que é assim como costumo dizer quando me perguntam em que bairro me escondo. Cresci em meio a toda sorte de apuros e liberdades peculiares a uma criança pobre do meu século. Meu primeiro e único berço foi um pequeno buraco feito no chão batido da nossa cozinha, forrado primeiramente com o pano aproveitado de rede, onde depois era posta uma confortável camada de cueiros ou tecidos um tanto menos ordinários. Aí nessa espécie de ninho ao rés do chão minha mãe me punha enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Esse tipo de improviso era muito comum entre as gentes de nossa classe. À noite o foco da lamparina projetava sombras enormes pela casa. Quase consigo sentir neste minuto o cheiro forte do querosene. Havia também por ali um fogão a lenha, de duas bocas, onde era engendrada a maioria das refeições. Quebrei muito graveto para minha mãe acender o fogo. Luz elétrica e fogão a gás foram coisas que só chegaram até nós quando eu já contava cerca de dez anos. Historicamente, descendo de uma família sem muita tradição nos estudos, onde se verificam inúmeros casos de analfabetismo, tanto do meu lado paterno quanto materno. Por pouco eu mesmo não engrossei essa estatística.

Como assim?...
Com dez anos de idade, para você ter uma idéia, eu continuava analfabeto. Só aos onze pisei pela primeira vez numa escola, onde me deram cartilha do ABC e tabuada. Até hoje, seja dito, minha maior aventura escolar foi ter concluído o ensino primário, coisa que revelo sem o menor orgulho. Pois já paguei, e continuo pagando, um preço bastante alto por essa, digamos, insuficiência curricular. Também concluo que as coisas poderiam ter sido ainda piores para o meu lado. Minha mãe, por exemplo, que é doutora em amor e paciência, não se assina. Meu pai ainda absorveu alguns rudimentos de leitura e escrita, porém jamais voltou da feira com um romance ou livro de poesia entre o feijão e o arroz. Portanto, ao menos no contexto familiar, não tive muitas oportunidades, não fui criado numa atmosfera favorável ao meu processo de educação. Lá em casa não havia livros, nunca tivemos uma estante com livros, nem mesmo tenho notícia de que alguém possuísse tal coisa naquele subúrbio miserável em que vivíamos. Havia apenas uma bíblia dos protestantes, já muito avariada e antiga, que uma parenta de minha mãe largou lá em casa.

Então você tornou-se um autodidata, foi isso?
Creio que você agora empregou o termo que melhor se ajusta ao meu caso. Não se trata de apologia à evasão escolar, de modo algum. Mas esta pequena afinidade que tenho com nosso idioma deve ser creditada às leituras que realizei nestes últimos quinze anos. Durante o curto período em que freqüentei uma sala de aula, embora nunca tenha sido reprovado, fui sempre um aluno medíocre, que tirava, no mais das vezes, apenas as notas necessárias para trocar de ano. Enquanto me saía melhor em português, matemática era um caos, um verdadeiro calvário para meu cérebro, que se atrapalhava todo com os algarismos. Por outro lado, as palavras me provocavam fascínio. O maior alumbramento de minha vida foi justamente descobrir que podia ler. Nada mexeu tanto com o meu espírito. Li como quem saciasse uma fome antiga. E hoje me sinto menos marginal perante a sociedade dita escolada deste país de maracutaias e sanguessugas. Mário Quintana dizia que o pior analfabeto é aquele que sabe ler e não lê.

Sem formação universitária, com apenas o primário concluído, você enfrentou muitas dificuldades para conseguir colocação no mercado de trabalho? Por que tipos de emprego você já passou até aqui?
Tentarei fazer um resumo. Hoje estou na Biblioteca Municipal, onde sou um modesto funcionário público. Um ambiente agradável, em meio a livros e pessoas que me têm simpatia. O prédio passou por um grande serviço. Foi totalmente recuperado, ganhou um luxuoso anexo de quatro andares e representa agora a maior e melhor casa de livros deste Rio Grande. Gosto do que faço. Recebo meus vencimentos rigorosamente em dia. Mas nem sempre foi assim ao longo de minha volubilíssima trajetória. Fui ajudante de sapateiro. Comecei com oito anos de idade, na mesma sapataria em que meu pai trabalhou dezessete anos. Eu ainda menor, o patrão assinou minha carteira. Mas o ramo de calçados fracassou na cidade e eu tive que seguir outros rumos. Vendi redes, colchas de cama, cadeiras de plástico e vasilhas de alumínio de porta em porta. Surgiu uma oportunidade na área de cosméticos e passei a vender produtos da Avon: perfumes, desodorantes, batons, cremes de pele, sabonetes, shampoos, rímeis e esmaltes de unha. Mas aí tomei uns calotes e arrepiei carreira do negócio. Um primo abriu um armazém de sal e me chamou para trabalhar no carrego e descarrego de caminhões. Depois fiz um bico numa casa de pasto do Centro, onde servi à mesa. Engordei alguns quilos e saí devendo cinqüenta cruzeiros ao dono. Consegui uma farda, peguei de um cassetete, pendurei um apito no pescoço e já era guarda noturno num quarteirão do Santa Delmira. Daí Apolônio Cardoso, advogado e poeta paraibano, figura boníssima, possibilitou o meu ingresso como revisor e copidesque num velho matutino desta província. Cheguei a editor de cultura, mas após três anos fui convidado a sair por “insubordinação mental”. Aliás, duas coisas muito importantes aconteceram na minha vida de trabalho: uma foi ter entrado para a imprensa, a outra foi ter saído dela. Estava mais uma vez à deriva quando o então vice-prefeito Antonio Capistrano, idealista e fidelista apaixonado, arranjou-me esse emprego na prefeitura. Eis, mais ou menos, o meu currículo de ocupações.

E quanto à sua atividade como revisor de textos, você não trabalha mais com isso?
Eu até já havia deixado esse tipo de serviço, mas retomei no início do ano. À noite e nos finais de semana, para complementar a receita, faço a correção de livros, monografias e teses. Cobro dez reais por folha de papel impresso, seja qual for o gênero de literatura. Às vezes também faço a tradução da obra. Em março, por exemplo, verti para o português um romance do doutor Saraiva, que me pareceu originalmente concebido numa espécie de dialeto malaio. O homem escreve em tudo quanto é jornal do Estado e aspira entrar para a Academia do mestre Cascudo.

Acontece de alguém pechinchar, de lhe pedir um menos no preço?
Quase sempre. Mas tenho procurado fugir dos oportunistas. Há em nosso meio a péssima cultura de se concluir que o trabalho intelectual não precisa ser remunerado. Ou que pode ser pago com qualquer mixaria. O sujeito lhe aparece com um calhamaço de duzentas ou trezentas páginas para conserto, mas achando ele que está conferindo a você algum tipo de honra pelo simples fato de lhe confiar o serviço. Ora bolas! Para esse tipo de gente eu estou sempre ocupado.

Quais as lembranças e influências dos primeiros livros ou autores que você leu?
Até pela minha realidade financeira, jamais tive acesso a uma grande variedade de autores e obras. Mas posso lhe assegurar que as influências foram muitas em todos os gêneros de literatura que pratiquei até aqui. No início, porém, quando voltei minha curiosidade ledora para o campo das obras literárias, interessei-me primeiramente pela arte do verso. A poesia, ao menos naquele momento, era o que estava mais ao alcance de minha sensibilidade e discernimento.

Na poesia, portanto, quais os poetas que mais lhe impressionaram nessa primeira fase de suas leituras?
Sem o menor critério e nenhuma orientação, deparei com autores brasileiros como Guilherme de Almeida, Mário Quintana, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Raimundo Correia, Gregório de Matos, Raul de Leoni, Cruz e Sousa, Da Costa e Silva, Dante Milano, Castro Alves, Vicente de Carvalho, Alceu Wamosy, Jorge de Lima, Alphonsus de Guimaraens, Francisco Carvalho, Ivan Junqueira, Carlos Drummond, Vinicius de Moraes, Affonso Romano de Sant’Anna, Alexei Bueno e Cecília Meireles. Do lado estrangeiro, creio que primeiramente Camões com os sonetos de Poesia Lírica. Depois vieram Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Pablo Neruda, Antero de Quental, Charles Baudelaire, Cesário Verde, Bocage, José Régio, Mário de Sá-Carneiro, etc.

Entre os prosadores, quais foram os seus primeiros encontros com a prosa de ficção? Quem lhe marcou mais?
Leio, sobretudo, autores nacionais, especialmente os que se ocuparam e se ocupam em produzir suas obras de ficção com base na realidade ou história do povo brasileiro. Li mestres da crônica e do conto como Rubem Braga, Artur Azevedo, Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Antônio Maria, João do Rio, Moreira Campos, Viriato Corrêa, Aníbal Machado, João Simões Lopes Neto, José J. Veiga, Moacyr Scliar, Viana Moog, Otto Lara Resende, Lima Barreto, Hélio Pólvora, Victor Giudice, Orígenes Lessa, Mário Sette, Luiz Vilela, Raimundo Carrero e Paulo Mendes Campos. Este último, todavia, por razões muito particulares, já não desperta em mim o mesmo interesse da primeira hora. Dos romancistas, quero citar Adonias Filho, Autran Dourado, Júlio Ribeiro, Assis Brasil, Lúcio Cardoso, Raquel de Queiroz, Dyonelio Machado e Raduam Nassar. Mas há dois nomes, ao menos para mim, que representam a verdadeira síntese da consciência artística nas letras nacionais: Machado de Assis e Graciliano Ramos. Uma literatura que conta com gênios dessa magnitude, com tal universalidade e atualidade dos fatos e da linguagem, nada fica a dever a nenhuma outra de parte alguma deste mundo. É lendo principalmente estes homens, numa releitura cada vez mais interessada e prazerosa, que me conscientizo do quanto o ofício de escrever é uma arte que ficou para bem poucos.

Que romance lhe causou maior espanto?
Foi Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Aquilo, ao menos para um recém-alfabetizado, que era o meu caso, foi um verdadeiro estupro mental. Cheguei à última página do calhamaço movido muito mais por um sentimento de compromisso comigo mesmo do que propriamente pela voltagem artística da obra. Aliás, devo ser honesto, não encontrei prazer algum naquele tipo de leitura. Claro que por essa época (eu devia ter entre quinze e dezoito anos) meu nível de compreensão e avaliação de uma obra daquele porte, muito mais do que hoje, era baixíssimo.

Da ficção estrangeira ou de Primeiro Mundo, quem você destacaria?
Movido muito mais pela curiosidade que nos provocam esses tão badalados autores, ocupei-me com Dostoiévski, Eça de Queirós, Miguel de Cervantes, Gabriel García Márquez, Miguel Torga, Tchekhov, Julio Cartázar, Maupassant, Saint-Exupéry, Balzac, Marcel Proust, Tolstoi, Rousseau, Ambrose Bierce, Nathaniel Hawthorne, Marguerite Yourcenar, Albert Camus, James Joyce, Oscar Wilde... Mas fiquemos por aqui. Provocar o leitor com uma lista maior que essa já parecerá um tanto pedante.

Pelo seu estilo rebuscado de escrever, você é considerado o Machado de Assis mossoroense. Como você lida com esse rótulo e até que ponto essa comparação é verdadeira?
Em primeiro lugar, creio que seja legítimo e oportuno a um canário expressar-se como tal. Pois, do contrário, julgaríamos completamente bizarro se, de uma hora para outra, víssemos qualquer dessas aves de mavioso canto e bela plumagem soltando relinchos e escoiceando sobre os ramos das árvores. Então, enquanto escritor, enquanto literato, não posso agora escrever como escreve, por exemplo, essa multidão de rocinantes que toma as salas de bate-papo da Internet e enche as nossas caixas do correio eletrônico com toda sorte de aberrações e estripulias contra a gramática normativa deste país. Ora, se consumi boa parte da minha vida tentando diminuir os meus equívocos de escrita através de aturado e laborioso esforço, como diria Rui Barbosa, por que então deverei, em benefício de uma absurda convenção de asnos “dedógrafos”, jogar todo esse trabalho na privada? De jeito algum. Certo que nos lapsos de ordem corretiva e mesmo nas deficiências de nível geral todos nós, operários da palavra, estamos sujeitos a tropeçar. Porém, o que não pode haver é essa delinqüência desenfreada e coletiva que praticam contra a língua portuguesa do Brasil, especialmente por parte de indivíduos que se pretendem e se arvoram escritores e homens de imprensa. A estes, com rigor, compete dar o melhor exemplo possível e demonstrar o mínimo de respeito e responsabilidade com a própria fonte de expressão e subsistência. Quanto a essa história de “Machado de Assis mossoroense”, sugiro que os senhores vão tomar satisfações com o beletrista Antônio Alvino da Silva Filho, que é um rapaz de grande intelecto e bastante espirituoso. Foi ele quem primeiro escreveu num jornal de Mossoró essa risível comparação. Quando muito, podem me chamar de Foice de Manuel, que estará de bom tamanho. Assim produzirão menor estrago à memória do maior escritor brasileiro de todos os tempos.

E qual seria, portanto, o tipo apropriado de linguagem a ser desenvolvido por nossos intelectuais?
Defendo que a linguagem pela qual se expresse um escritor, antes de mais nada, deva ser literária. Isto é, a voz do homem de letras não poderá jamais ter a mesma dicção, o mesmo desleixo e leviandade com que um repórter de polícia de quinta categoria informe aos leitores do seu jornal (também de quinta categoria) sobre o atropelamento de um travesti durante a última passeata gay. Vendo por esse ângulo, de repente não será o meu jeito de escrever tão rebuscado assim. Talvez os nossos leitores é que estejam muito acostumados ao que há de pior em linguagem impressa. Trata-se de uma gente de um nível de leitura vexatório, de um vocabulário limitadíssimo, que a cada dia mais se habitua às chulices da moda, às baboseiras do rádio e da televisão, às ridículas expressões e convenções das salas de bate-papo. E não defendo aqui gramatiquices nem o livre emprego de palavras em desuso. Absolutamente. Entretanto, se uma dúzia de pseudoleitores ignora o sentido do vocábulo “solecismo”, por exemplo, logo o miserável que lançou mão desta palavra “tão incomum” também poderá ser visto como alguém de estilo rebuscado. Mas ninguém se dá o trabalho de consultar o pai-dos-burros. “Em certos meios (escreveu Graciliano) o dicionário é tão desconsiderado como os palavrões obscenos que a crítica pudibunda repele.” Contudo, estejam certos, é impossível progredir sem ele.

Como se processa a sua criação literária? Há mais transpiração do que inspiração durante o seu processo criativo?
Certamente. Escrever é um trabalho duro, afirmava o escritor norte-americano William Zinsser. “Uma frase clara não sai por acaso — e poucas saem na primeira, na segunda ou mesmo na terceira tentativa. Lembre-se disso como consolo nos momentos de desespero”, aconselhava Zinsser. Mas alguns indivíduos que conhecemos, verdadeiros médiuns e psicógrafos de si mesmos, sentam-se diante do computador, fustigam o teclado durante uma hora (outros nem isso) e levantam da cadeira convictos de que produziram boa literatura. Comigo não é assim. Preciso de muitas horas, geralmente dias, para dar um conto por encerrado. Não disponho desse tipo de autopsicografia, de automatismo do engenho, como se todo o mérito da criação estivesse na ponta dos dedos e não nos escaninhos do intelecto. Em lugar da técnica, do zelo com a forma, ou mesmo da humildade em duvidar do próprio talento uma vez ou outra, prefere-se o método superficial com que os médicos do sistema público de saúde atendem seus pacientes.

Antes de começar a escrever um conto, por exemplo, você elabora algum roteiro a ser seguido, algo que lhe proporcione uma noção de começo, meio e fim?
Nem sempre. Aliás, para ser sincero, nunca rascunhei num papel esse tipo de mapa. Não no caso da crônica e do conto. Vou me guiando mentalmente, na base do tirocínio. Mas confesso que há situações, talvez por ignorar essa pequena providência, em que percebo que a coisa desandou e que me enrolei todo nas engrenagens da ficção.

E como você resolve uma situação desse tipo?
Às vezes é possível consertar o defeito e eu prossigo bajulando o texto. Já com o enredo vertido para o papel, com a história toda mais ou menos pronta, dou início ao trabalho de carpintaria, de limpeza e polimento. Aí refaço um período, condeno uma frase, insiro outra, troco um nome de personagem, de bairro ou de rua, substituo palavras, condeno adjetivos, apago um gerúndio, flexiono o verbo, torço um parágrafo, corto aqui, amplio acolá, releio, reescrevo, torno a reler, e sinto que ainda não é aquilo que desejo. Então persisto com a empresa: exijo de mim e do texto, sofro, me desespero, ando pela casa, falo sozinho (Beatriz se assusta), vou ao banheiro, lavo o rosto, tomo um café, examino a estante, leio qualquer coisa, consulto o dicionário, abro um jornal, fecho, digo um impropério, me arrelio com a política. Depois volto à página, reescrevo, aparo, dou mais uma lida. Toda vez é desse jeito.
Foto: Carlos José.

Jornalista Alexandro Gurgel entrevistando o poeta Marcos Ferreira.

Conforme declarou Câmara Cascudo, “Natal não consagra nem desconsagra ninguém”. O leitor mossoroense costuma exaltar seus poetas e escritores? Há uma boa aceitação de novos livros no mercado?
Assim como Natal, Mossoró também não consagra nem desconsagra quem quer que seja. Aliás, o Rio Grande do Norte nunca teve força crítica ou intelectual para esse tipo de coisa. Estamos, ainda, na fase dos espelhos vindos de fora, na condição de povo-lagartixa, balançando a cabeça e arreganhando os dentes para a arte que nos impõe o resto do País. E fazemos por merecer. Pois em matéria de arte, principalmente literatura, sempre fomos um zero à esquerda. Os bem vizinhos Paraíba, Ceará e Pernambuco estão séculos à nossa frente. Excetuando-se Câmara Cascudo, que não firmou-se nem como poeta nem como ficcionista, qual o homem de letras deste Estado que alcançou o grau de representatividade e importância nas letras nacionais que têm os cearenses José de Alencar, Raquel de Queiroz e Patativa do Assaré, por exemplo? Do Pernambuco, o Brasil inteiro festeja autores como Antônio Maria, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, etc. Entre os paraibanos, quem de nós, ignorantes e ignorados potiguares, terá atingido o êxito e repercussão de um José Lins do Rego, de um Ariano Suassuna ou Augusto dos Anjos?... Ninguém. Nesse sentido, o que existe por aqui é muita empulhação, um bando de preguiçosos que se preocupa muito antes em ter vida literária do que literatura. Há muita gente nas livrarias, palestrando nos cafés e saraus, mas produzir que é bom ninguém produz. Porque bem poucos se dão conta de que é preciso botar a bunda na cadeira e escrever. E mesmo entre esses, tanto em Mossoró como em Natal, existem aqueles que se imaginam auto-suficientes, bafejados por alguma divindade do Olimpo literário, de modo que julgam desnecessário “perder tempo” com esse ou aquele autor. Uma vez na vida, outra na morte passeiam os olhos por um prefácio ou orelha, mas geralmente ficam por aí.

Em Natal, há mais poetas por metro quadrado do que em qualquer parte do mundo. Acontece a mesma coisa em Mossoró? A que você atribui essa verve poética do nosso Estado?
Veja que há menos complicação em dar por concluído um suposto poema do que um conto com cinco ou dez páginas. Assim, na falta da técnica e do talento, prefere-se as facilidades disto que chamo de “poesia do enter”. O sujeito produz um fraseado à-toa e vai quebrando as linhas em variados tamanhos até chegar ao formato de algo parecido com um poema. Então, há muito poeta e pouca poesia. Um tipo de fenômeno que só posso atribuir à nossa histórica e constrangedora inferioridade artística, ainda mais agravada no campo das letras. Creio que de cada cem poemas que se escreve atualmente no Rio Grande do Norte, cerca de noventa e cinco não valem nada, apenas lixo e descaramento dos seus respectivos autores. Mas há exceções, você me dirá. Claro que sim, respondo. Estas exceções, porém, cada vez mais raras e honrosas, não podem servir de rampa ou escada à cínica mediocridade dos demais. É isso mais ou menos o que ocorre com o nome de Luís da Câmara Cascudo. Pela grande reputação e destaque que conseguiu reunir em torno de si, graças à força e seriedade de sua extraordinária obra de folclorista e pesquisador, querem torná-lo uma espécie de trampolim intelectual com que projetem seus próprios nomes. Grudam-se à memória, ao prestígio e celebridade do grande potiguar feito o musgo que se fixa às úmidas paredes de um jazigo.

De acordo com o teórico literário Roland Barthes, a escritura faz do saber uma festa, sugerindo que a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor. Afinal, qual o sabor das palavras poéticas?
Você agora me colocou numa tremenda sinuca de bico. Em primeiro lugar porque nunca li, confesso, um só parágrafo desse reputado intelectual. E não só dele. Há muito monstro sagrado dessa área cuja obra jamais me chegou ao alcance. Depois, queira perdoar-me, ignoro completamente o que o senhor Barthes tenha pretendido dizer com “sabor das palavras”. A experiência mais próxima que tive de algo dessa natureza foi diante de um prato em que me foi servida uma sopa de letrinhas.

Qual a função da poesia? Atualmente, como você está vendo a formação de novos leitores de literatura?
Mozart declarou certa feita que a poesia é a filha obediente da música, no que deve estar correto. Mas creio que ela, assim como a arte de um modo geral, seja muito mais do que isso. Também se lhe acrescente a função mais imediata de recordar a todos nós que o homem transcende a gravidade limítrofe do Céu e do Inferno, da Vida e da Morte. Quanto morto-vivo que arrastava os pés por este mundo não conseguiu reencontrar-se consigo próprio após ser atraído pelos acordes de sua lira? Quantos outros indivíduos já não largaram este velho cais de agruras e prazeres e se fizeram imortais por meio da poesia, da literatura, da arte? Portanto, quando devidamente respeitada e correspondida, ela, a poesia, tem o poder de alargar horizontes e aproximar corações, de conferir às pessoas um tal sentimento de dignidade e uma tal força de superação que raramente conseguimos dimensionar no seu todo ou parte. No que diz respeito ao aparecimento, renovação e formação de novos leitores de literatura, continuo achando que não estamos pregando no deserto. O que me parece urgente, imprescindível, é que os governos de hoje e de amanhã invistam e apostem um pouco mais numa sociedade que tenha, entre outras formas de recreio e aprendizado, também o hábito de ler. Um país realmente sério, conforme nos advertia o paulista Monteiro Lobato, se faz com homens e com livros. Antes, porém, é necessário formar no cidadão essa nova consciência de ordem e progresso. Porque a literatura, a exemplo de toda e qualquer arte, não quer somente adeptos, quer também amantes.

Ao lado do editor Túlio Ratto, você participou ativamente da criação da revista Papangu, mantendo uma coluna chamada “Escrivaninha”, onde publicava seus contos. Qual a razão da sua saída da revista?
Dois piratas da Gazeta de Negócios, mais um outro do Correio do Alarde, andaram rosnando inverdades e meias palavras contra mim nos seus espaços de meretrício jornalístico. Não digeriam o fato de que um funcionário público municipal, ainda que tão pequeno e desimportante como eu, pudesse participar de um veículo sem ligações comerciais com esse ou aquele partido. Mas deram com os burros n’água e ficaram só nisso. Nenhuma admoestação ou censura me foi feita por parte dos meus superiores, que são pessoas muito ocupadas e de bom senso, sem o estilo arcaico e perseguidor de certas figuras de nossa classe política. Então, em comum acordo com o editor Túlio Ratto, aproveitei o ensejo para tirar férias por tempo indeterminado. Fechei a Escrivaninha e deixei a revista de livre e espontânea vontade. Pesei vantagens e conveniências e saí. Foi no vigésimo quarto número, fechando dois anos de minha participação. E creio que eu, a exemplo de outros colaboradores, contribuí de algum modo para que hoje tenhamos em Mossoró, no interior do Estado, esta que se vai firmando entre as melhores e mais sérias publicações culturais deste país. Ali amolei a paciência do leitor com pelo menos vinte contos, meia dúzia de crônicas e uns dez ou quinze poeminhas miúdos. Noutros instantes, às vezes com pseudônimo, participei de entrevistas, como a do crítico mineiro Fábio Lucas e a do grande poeta nacional Francisco Carvalho, oriundo do interior cearense. Túlio Ratto me dava espaço e confiança. Apresentei palpites, sugeri isso, condenei aquilo, dei títulos, indiquei pessoas para integrar o elenco de colaboradores. Nesse período, com o pseudônimo de Rachel Ponte Preta, fui também o revisor da revista. Enfim, posso dizer que esta foi a melhor experiência que tive no ramo de imprensa cultural.

Entre Mossoró e Natal há uma produção diária de oito jornais, mostrando que há leitores ávidos por informação no Estado. Na maioria desses periódicos, as colunas sociais, com seus jornalistas bajuladores, suprem muito mais páginas do que as editorias de cultura. Qual o mistério desse fenômeno cultural?
Não há mistério nenhum. A coisa é bastante óbvia. Tem a ver com descompromisso, insensibilidade e despreparo intelectual desses supostos homens de imprensa. Tanto por parte dos proprietários dos veículos quanto pelo lado dos editores contratados, cuja maioria só serve mesmo para separar o joio do trigo e publicar o joio. No romance Ilusões Perdidas, de 1843, Balzac afirma: “Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la.” Talvez não seja o caso, porém não se pode negar que a linha de atuação de noventa por cento dos jornalistas não difere muito do método de trabalho das mulheres de vida fácil. E, pelo descaramento e promiscuidade com que os homens de jornal negociam as suas opiniões e palavras, vejo agora que esta comparação que fiz acarreta qualquer prejuízo moral às profissionais do sexo. Então, por pior que nos pareça, não podemos de modo algum atirar aos colunistas sociais (eficientíssimos no papel que lhes cabe) a culpa pela miserabilidade dos “cadernos de cultura” de hoje em dia. Num Estado onde creio que tenhamos, no mínimo, meio milhão de “jornalistas”, esta continua sendo mão-de-obra muito escassa. Afora um Tácito Costa, um Alexandro Gurgel, uma Iuska Freire, um Leandro Tomé, um Franklin Jorge e um Carlos de Souza, por exemplo, o jornalismo cultural do Rio Grande do Norte está morto e enterrado. Feliz o veículo que pode contar com algum desses profissionais.

O que representa, para a literatura potiguar, a circulação da revista Papangu?
Para a literatura potiguar, que não existe — não ao menos fora dos nossos limites geográficos —, a Papangu não pode representar coisa alguma. Todavia, de um pequeno e desconexo número de artistas e intelectuais, acredito que ela seja representante. Pois qualquer sujeito de razoável cultura e o mínimo bom senso há de convir que essa revista, quer pela pluralidade do seu conteúdo, quer pela consciência artística com que é conduzida, pode servir de vitrina e instrumento de projeção a valores culturais que porventura mereçam ser mostrados.

Recentemente, Mossoró perdeu grandes entusiastas da produção literária mossoroense, como os escritores Dorian Jorge Freire e Vingt-un Rosado. Você acredita que a ausência desses intelectuais provocou uma certa apatia entre os literatos, culminando no fechamento da Academia Mossoroense de Letras e na estagnação de algumas outras instituições culturais da cidade?
De modo algum. Especialmente no âmbito literário, essa letargia a que você alude vem desde há muito. A morte de ambos não provocou qualquer alteração sobre esse estado de coisas. O fechamento da Academia Mossoroense de Letras, ou a paralisação desta, a exemplo do que ocorre com outras entidades culturais do município, é um quadro de comodismo e inoperância que já dura pelo menos uma década. Desde que me entendo como freqüentador desses inferninhos da cultura mossoroense, que tais instituições têm a mesma mobilidade fotográfica que possui aquele jabuti em óleo sobre tela do poeta Airton Cilon. Isto é, acostumou-se por aqui a largar todo o fardo da arte local no espinhaço de trabalhadores braçais da cultura como Raimundo Soares de Brito e Vingt-un Rosado. Estes, seja dito, limitados pela intransigência da própria idade, carregaram por tempo demasiado longo uma responsabilidade que nunca quisemos ter. Enquanto isso, uma fauna de nutridos e perfumosos senhores de ventres bojudos segue fazendo pose de intelectual pelos cafés e livrarias do Estado.

O poeta ensandecido Plínio Sanderson costuma dizer que não entra em sociedade que o aceita como sócio. Qual a sua visão das academias de letras com seus imortais e os chás literários? Se fosse convidado, você entraria para a Academia Norte-rio-grandense de Letras?
Honestamente, não creio que um dia um convite desse tipo me possa ser formulado. Mas ressalto que compor uma instituição com esse nível de importância e de suposta seriedade, antes de mais nada, representa uma grande honra para qualquer troca-tintas desta periferia intelectual do País. Entretanto, meu caro repórter, primeiramente se faz necessário que ocorra a fundação dessa hipotética Academia Norte-rio-grandense de Letras a que você se refere. Até onde sei, o que temos no Estado, nos dias atuais, é uma academia norte-rio-grandense de lesmas, cuja única atividade se concentra na política funerária em volta do seu morto rotativo.

Quais os livros (poesia e prosa) de autores potiguares que não podem faltar na cabeceira de um intelectual antenado?
Assim de repente, não mais do que de repente, não posso lembrar muita coisa. Minha memória tem a durabilidade de um Sonrisal num copo d’água. Além do quê, há poucos livros de autores potiguares que possam interessar a um leitor mais sério. Mesmo assim, posso citar os seguintes poetas e prosadores: Polycarpo Feitosa, Zila Mamede, Othoniel Menezes, Magdalena Antunes, Jaime Hipólito Dantas, Peregrino Júnior, Luís Carlos Guimarães, Dorian Jorge Freire, Newton Navarro, Martins de Vasconcelos, Renard Perez, José Nicodemos, Deífilo Gurgel, Afonso Bezerra, José Humberto Dutra, Vicente Serejo e Nei Leandro de Castro. Estes, a meu ver, são aqueles que atingiram a maioridade da palavra e que merecem a atenção do público.

E da geração mais nova de poetas e prosadores, quem você destacaria como gratas revelações?
Kalliane Sibelli (poetisa) e Líria Nogueira (cronista), ambas muito jovens e talentosas, já merecem que o leitor lhes confira algum crédito. Também quero acrescentar ao rol de citações os poetas Antoniel Campos, Márcio de Lima Dantas, Crispiniano Neto, Antônio Francisco, Leontino Filho, Jarbas Martins, Aécio Cândido, Lívio Oliveira, Aluísio Barros e Paulo de Tarso Correia de Melo. Os demais, cujos nomes prefiro não citar, justamente por estarem no mesmo nível embrionário em que me encontro, ainda não podem ser vistos a olho nu. Todavia, não me causará surpresa se amanhã ou depois um desses figurões da crítica condescendente promover a escritores de muitos méritos todos esses microscópicos talentos. Não importa. Sei que a mim, como queria o modernista Mário de Andrade, compete chamar ao tostão pelo seu modesto nome de tostão.

Ultimamente, o que você tem escrito com prazer? Quais os livros que estão no prelo?
Qualquer que fosse o gênero (romance, poesia ou crônica), sempre escrevi com prazer. Nestes últimos três anos, porém, tenho me exercitado com maior entusiasmo na literatura de ficção, especialmente no conto, que me parece também funcionar como uma espécie de ensaio para o romance. Aqui neste computador, além de um romance apenas começado, estão mais três livros que eu poderia mandar imprimir agora mesmo. Porém não tenho pressa, muito menos dinheiro. Trata-se de um livro de contos, um de crônicas e outro de poesia. Lá para outubro do ano que entra, tendo eu melhor sorte no jogo do bicho, talvez eu os envie à gráfica, ao menos o volume dos contos. Mas não sei. O cambista aqui do bairro é um tremendo pé-frio.

Que tipo de conselho você daria a quem pretenda iniciar-se na arte de escrever literatura?
Será um palpite de quase ou nenhum prestígio, mas só posso sugerir a quem deseje ser escritor que leia muito, principalmente bons autores brasileiros. Não desperdice seu tempo com esses best-sellers a que um sem-número de críticos desonestos ou ignorantes confere tanto relevo. Também não vale a pena acompanhar o que diz a maioria dos nossos jornais, feitos no mais das vezes por indivíduos que sequer se dão o trabalho de ler no dia seguinte os disparates que escreveram hoje. Procure ter no seu cotidiano a boa presença de livros. Porque a leitura é a grande responsável pela verdadeira formação de qualquer pessoa, estimula o senso artístico e favorece a autocrítica. Assim também acontece com o processo redacional. Não se alcança um nível razoável em termos de arte literária ignorando-se a necessidade de ler. Somente após isso é que se pode pensar em produzir literatura. Rousseau, que começou a escrever apenas aos trinta e cinco anos, quase até os trinta era analfabeto. Dante Milano tinha cinqüenta anos quando estreou em livro. Polycarpo Feitosa (melhor escritor potiguar da história) contava sessenta e um anos quando lançou Flor do Sertão em 1928. Pedro Nava publicou Baú de Ossos com mais de setenta. Então, o que influi para o êxito ou o fracasso de alguém no ofício literário não diz respeito à idade com que você publique um livro nem ao tamanho de sua ficha bibliográfica, mas sim ao nível de arte presente no mínimo que você escreva. Este o conselho que dou a quem deseja ser escritor: leia com voracidade, escreva compulsivamente e publique com moderação.

3 comentários:

Theo G. Alves disse...

Alexandro,
muito bom esse blogue, cara. Extremamente informativo, inspirado e produtivo.
Muito bom.
Até breve.

Anônimo disse...

meu caro Alexandro
leia no site
www.queimabucha.com
o artigo DE ESCREVINHADORES
na coluna de Gustavo Luz
comentando essa entrevista

Anônimo disse...

Parabén Alex, vc está dividindo conosco todo o potencial e conhecimento desta familia ilustre que temos em Natal: GURGEL. Parabéns!