2 de outubro de 2006

De Pavões e Pavonadas

MARCOS FERREIRA
Escritor — escrivaninhamarcos@hotmail.com

No mês de julho último, à falta de alguém ilustre ou de melhor reputação no campo das letras nacionais, findo por ser entrevistado para a edição de número 30 da Papangu — revista de humor e cultura do Rio Grande do Norte. Coube ao repórter Alexandro Gurgel (dos poucos homens de imprensa deste Estado que saberão distinguir uma estante de livros de um cacho de bananas) a desimportante tarefa de tomar o meu depoimento.
Abalando-se da cidade dos Reis Magos até esta remota paróquia de Santa Luzia, o meu entrevistador apareceu-me aqui em casa numa dessas ensolaradas manhãs de sábado. Exalava por todos os poros os vapores da farra etílica de que tomara parte na noite pretérita. Fazia-se acompanhar do fotógrafo Carlos José e do editor Túlio Ratto, esse desconcertante cartunista cujo extraordinário talento já começa a render-lhe fortuna e fama.
Sentamo-nos em torno da mesa e o rapaz da câmera foi logo batendo as chapas que ilustrariam a matéria. Senti-me naturalmente importante. Jamais nenhum veículo — rádio, jornal ou programa de TV — me dera esse cabimento. Não é comum numa terra de tantos imortais e tipos diplomados querer-se ouvir um módico sapateiro da literatura. Ainda mais quando se trata de um sujeito com o péssimo hábito de dizer o que pensa.
Naquela manhã eu acordara cedo, entreguei-me às evacuações de praxe, esmerei-me no barbear e caprichei no banho. Carecia estar apresentável, sair bem na foto. Nunca se sabe que tipo de público acompanha esses impressos. Depois há certas mulheres (mesmo as bonitas) que conseguem perdoar a pouca atratividade física de certos homens supostamente intelectuais. Então não havia por que mudar em desleixo a minha auto-estima.
Alexandro tirou de um bolso as perguntas que escrevera. Comecei falando de coisas pueris e de apuros financeiros em casa dos meus pais. Narrei-lhe uns episódios agrestes de minha infância e o meu interlocutor fez assim com o polegar em riste, os quatro dedos flexionados contra a palma da mão. Ratto julgou aquele interrogatório um negócio muito pau e foi bisbilhotar os volumes na estante, de onde sacou as 200 crônicas de Rubem Braga.
Duas horas de conversa voaram entre xícaras de café e a fumaça de cigarros. Revelei-me um completo cavalo quando o jornalista perguntou-me alguma coisa sobre um tal de Roland Barthes. Nisso pegamos um atalho e discorri acerca de jornalismo, instituições culturais e imortalidade. Sob a influência do álcool que emanava do suarento repórter, empolguei-me bastante e certas questões foram respondidas com excesso de franqueza.
Por exemplo, rebaixei à categoria de lesmas todos os respeitáveis habitantes do soberbo casarão da rua Mipibu, 443, na bela Natal. Depois transferi para uma espécie de randevu jornalístico noventa e cinco por cento da imprensa rio-grandense-do-norte. Nesse ponto, reconheço que fui um tanto generoso com os rapazes dessa área. Mas tão-só para não me acusarem de radicalismo. Ainda assim houve choro e ranger de dentes.
Um jovem redator da Gazeta de Negócios parou-me na rua para exigir explicações. O moço com fumaças de escritor não entendia o porquê de o nome dele não ter figurado entre os valores que citei na entrevista. E não foi o único insatisfeito. Aqui e ali um desses sisudos pavões da pequena urbe (geralmente alegóricos chefes de nulas e acéfalas instituições) troca rapidamente de calçada ao deparar-se comigo no passeio público.
Já em Natal, o seboso vermelho Abimael da Silva, pequeno negociante do ramo de livros e egos, ralhou na seção de cartas da Papangu de agosto com um enfezado artigo contra as minhas afirmações sobre esta imensa anedota a que deram o nome de literatura potiguar. Mesmo não sendo poeta, cronista, folclorista, romancista, contista, novelista ou um simples leitor de orelhas e prefácios, ele tomou para si as dores dos imortais.
Debruçando-se sobre os nomes que citei como merecedores da atenção do público, o “Sílvio Romero” natalense condenou com todas as forças de sua exponencial cultural livresca a imperdoável ausência daquilo a que ele chama de “grandes clássicos da Literatura Potiguar”. Entre esses, menciona o anódino Os de Macatuba, de Tarcísio Gurgel, e o “poético” Canto de Muro, de Luís da Câmara Cascudo. Dois livrinhos cacetes.
Concordamos que tanto o professor Tarcísio quanto o folclorista Cascudo, lúcidos e festejados intelectuais, têm outros méritos e obras que de fato podemos aplaudir com muita justiça. Só não me parece o caso dos exemplos expostos pelo sebista, que talvez não faça a mínima diferença entre clássico e crasso. Ora bolas, querer impingir à literatura do Brasil um Cascudo poeta ou ficcionista já se estará, no mínimo, forçando a barra.
Depois, ele faz umas observações sem futuro ao afirmar que Polycarpo Feitosa, o ótimo romancista de Gizinha, não pode ser considerado um grande literato simplesmente porque “nenhum potiguar teve acesso a obra completa” do ex-governador deste Estado, que morreu esquecido pelos seus conterrâneos num cortiço do Recife. Assim, Miguel de Cervantes também não seria quem é, visto que só lhe conhecemos o Dom Quixote.
Parafraseando uma facécia do ilustrado escritor Nei Leandro de Castro, também publicada na seção de cartas da Papangu de agosto, eu diria que Abimael da Silva sofre do cascudismo, “uma espécie de infecção que acomete 92,6%” dos coleópteros nascidos ou residentes na taba de Câmara Cascudo. Ou seja, a eterna viagem em volta do umbigo de Natal. Mas isso é comum entre os nativos de uma terra onde um cascudo é um deus.
Será, então, que Abimael da Silva não conhece a triste realidade de nossa história literária, ou isso é tão-somente provocação à-toa?... No seu delirante e atabalhoado “achismo”, teima em dizer que, perante o resto do País, a “nossa literatura” tem a mesma força e tradição que têm, por exemplo, a literatura dos Estados do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco. Fica-se, pois, admirado com a visível ignorância (ou será inocência?) do sebista.
Mês passado, numa típica edição caça-níquel, cheia de resenhas chinfrins, a revista Bravo!, de circulação nacional, trouxe a seguinte proposta ao seu público ledor: “100 Livros Essenciais — O ranking da literatura brasileira em todos os gêneros e em todos os tempos”. Aparecem nomes de todos os Estados do Brasil. E sabe quantos escritores daqui figuram nesta seleção? Nenhum. Já os paraibanos, os cearenses, os pernambucanos...
Claro que nossos briosos homens de letras preferem não reparar nessas projeções. Ainda menos o seleto editor Abimael da Silva, que logicamente só publica “clássicos” em sua reputada Coleção João Nicodemos de Lima, já na casa dos duzentos títulos lançados. Ali, sem dúvida, haverá apenas clássicos, nomes da mais alta significância para a literatura brasileira. Um negócio merecedor de nota, sem nenhum interesse comercial.
Amanhã ou depois Abimael da Silva será imortalizado em votação unânime. Trocará a cervejinha tomada entre a poeira dos livros de seu pequeno estabelecimento pelo burocrático chazinho nas arejadas tardes da requintada Academia. E é bom não duvidarmos. O bicho-homem tem ambições que a própria ambição desconhece. Pois ainda agora o afoito sebista publicou esse artigo apenas para provar que também não sabe escrever.

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