24 de novembro de 2006

Memórias pedagógicas de um escrevinhador metido a professor - Parte VII

Crianças perfiladas esperam a hora para cantar o Hino Nacional.


Natal, 03 de outubro de 2006.

"Poeta matuto cum nome de americano"
Bob Motta

O meu nome é Bob Motta,
sô matuto, bicho hôme.
Mais munta gente incucada,
seu pensamento cunsome.
Quando a questão vem à tona,
todo mundo questiona,
o pru quê dêsse meu nome.

E ais pessoa tem razão,
de istranhá, seu fulano.
Diz qui ao me registrá,
meu pai cumeteu um ingano.
Eu, um poeta matuto,
de linguajá puro e bruto,
cum nome de americano.

Por ser uma semana atípica no 2º Núcleo Educacional de Apoio à Criança e ao Adolescente, onde haverá comemorações a partir da quarta-feira, dia 04 de outubro, celebrando o “mês das crianças”, resolvemos antecipar nossa aula para os dois primeiros dias dessa semana dedicada aos seres humanos de pouca idade.

O professor Ary retomou o assunto da aula passada, falando do Estatuto da Criança e do Adolescente para uma platéia de cinco alunos desinteressados no tema proposto. As duas meninas ficaram a maior parte da aula de cabeça baixa como em outras oportunidades e os meninos, mais ativos, se admiraram com a palavra “gozar”, quando o professor falou dos direitos das crianças e adolescentes protegidos pelo ECA. Naquele momento, os meninos fizeram zombarias com alusões aos atos sexuais. Mas, com a explicação de outros significados para o verbo “gozar”, eles descobriram que pode ser um adjetivo, como na frase “achei a brincadeira muito gozada” ou como verbo em “o menino gozou todos os seus direitos”.

Ainda com uma esperança de obter resultados satisfatórios, voltamos às aulas com a Literatura de Cordel, buscando facilita a leitura e compreensão de textos. Foi explicado aos alunos que os folhetos servem para colocar o aluno em contato com a tradição oral e o romanceiro popular, mostrando o outro lado da “história” não contada nos livros didáticos tradicionais e ainda colocando o aluno em contato com a rima, a métrica e o ritmo poético do povo.

Além de permitir uma melhor expressão verbal e escrita, nossa pretensão era despertar no aluno a criatividade poética e um contato direto com versos de origens milenares e que se mantém ao longo do tempo, apesar de todas as intempéries sistemáticas. Não queríamos “criar” novos poetas, como pode ter deixado parecer para um dos alunos, mas tentamos desenvolver a criatividade dos alunos enquanto eles produziam seus próprios cordéis como um exercício de leitura. Não deu certo. Nenhum aluno conseguiu escrever nada nessa tarde. Não tenho certeza se continuaremos insistindo em exercício de produção de textos, sacrificante para todos os nossos pupilos.

Para incentivar a leitura dos folhetos, nós pedimos para que cada aluno lesse uma estrofe de cada cordel que tivesse em mão. Com muita dificuldade e em tom de brincadeira, os alunos leram gaguejando os versos do cordelista Bob Motta, cujo título é “Poeta Matuto com Nome de Americano”. Logo depois da leitura, pedimos para que os alunos lembrassem nomes de amigos que têm origens americanas (ou inglesas). Não demorou muito para identificarem nomes como “Wellington”, “Michael”, “Willian”, “George”, entre outros.

Para que os alunos percebessem a fonética nas palavras “matutas” contidas nos versos de cordel de Bob Motta, chamamos atenção para a maneira de escrever o poema de formar “errada”, observando a oralidade interiorana, como se o poeta falasse a língua do sertanejo. Enquanto os alunos distinguiam os sons das rimas, se familiarizavam com a escrita da Língua Portuguesa e aprendiam sobre os costumes das famílias natalenses em colocar nomes estrangeiros nas crianças por influência da Segunda Guerra Mundial.

Vejamos alguns versos do “Poeta matuto cum nome de americano”, de Bob Motta:

(...)

O meu nome era prá sê,
Mané, Ontôin ô Pêdíin.
Luiz, Tumé, Possidônio,
Damião, Juca ô Zézíin.
Zuza, Vavá, Arcelino,
Apolonho, Tributino,
ô intonce, Francisquíin.

Mais, porém, o qui acuntece,
é qui in Natá, minha mãe terra,
nascí in quarenta e oito,
dispôi da sigunda guerra.
Meu pai me levô daqui,
p'ro sertão do carirí,
p'ruis forró de pé de serra.

Natá, na sigunda guerra,
foi importante na históra.
Mode incruzá o Atrântico,
ficava na trajetóra.
E Parnamirim, bacana,
era a Base Americana,
o Trampolim da Vitóra.

(...)

A aula seguia seu curso normal, atraindo a total atenção daqueles adolescentes espantados por aprender que a vizinha cidade de Parnamirim foi sede de uma base aérea americana durante a Segunda Guerra, quando um dos alunos lembrou que já se avizinhara o horário do intervalo. Como quem toca num gomo de açúcar cheio de formigas, os alunos se dispersaram do assunto rapidamente, como se a porção de conhecimento daquela tarde fosse suficiente para preencher a cota cultural de cada um. Uma façanha nunca antes alcançada: conseguimos manter as atenções dos alunos voltadas para a Literatura de Cordel por volta de 15 ou 20 minutos ininterruptos.

Para alguns alunos, aquele som de ambulância desesperada anuncia o horário da patuscada vespertina, um instante para que eles possam se confraternizar enquanto saboreiam o prato do dia. Naquele final de tarde, as crianças se comportavam de maneira diferente. Rapidamente, todos se perfilaram no grande salão de recreação, sob o olhar severo de Dona Graça, para cantar o Hino Nacional. Alguns deles pareciam verdadeiros soldados saudando a Pátria, tal era o fervor com que cantavam. Outros, por não conhecerem a letra, somente balbuciavam algumas palavras. Foi possível perceber que a maioria dos alunos mais velhos ficou de boca fechada, sem nem mesmo cantarolar o poema escrito por Francisco Manuel da Silva.

Desço as escadas pensando naquele momento de civilidade juvenil brasileira, onde o respeito aos Símbolos Nacionais são absorvidos e respeitados dentro de uma lição de cidadania às crianças carentes através de um programa de assistência governamental com fins político-eleitoreiros. Tenho a impressão que se a Literatura de Cordel, ou outro tipo de texto, fosse massificado nas salas de aula o resultado seria mais satisfatório e lembro das palas do professor Paulo Freire, quando fazia observações com seus alunos: “Os ‘textos’, as ‘palavras’, as ‘letras’ daquele contexto em cuja percepção experimentava e, quando mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão ia aprendendo no seu trato com eles, na sua relação com seus irmãos mais velhos e com seus pais”.

Um comentário:

Capitão-Mor disse...

Parabéns por este blogue potiguar!