22 de fevereiro de 2007

Ladrão de beijo

por Vicente Serejo

É difícil, Senhor Redator, para um simples cronista de província já habituado a olhar a vida, entender a decisão da Polícia Militar de Minas Gerais nas cidades de Sabará, Ouro Preto, Itabirito e Nova Lima, ao considerar crime o roubo de beijos durante o carnaval. Pior: além de baixar a norma que diz ter respaldo legal no Artigo 146 do Código Penal, o ladrão flagrado tentando roubar um beijo seria preso e enquadrado como criminoso. E que a medida só não se aplicaria se, antes, o pretendente pedisse licença e esta fosse concedida.

Temendo minha própria ignorância, fui ao Código. E estava lá a previsão do Artigo 146 tipificando os crimes contra a liberdade individual. Não fala do roubo de beijos, é claro, mas avisa: não se pode constranger a ninguém por gesto violento ou grave ameaça, reduzindo sua capacidade de resistência. É o princípio geral que ninguém pode ser obrigar a fazer o que a lei não exige, menos no caso de atos cirúrgicos diante de perigo iminente de vida ou gesto que impeça o suicídio de outros. Pena de três meses a um ano, com agravamento.

Mesmo sabendo, Senhor Redator, que a teimosia quando aliada à ignorância é um perigo, nem assim consigo imaginar ser crime roubo de um beijo. Muito menos se teria gosto e sentido se antes o pretendente tiver que pedir licença. Admito que se houver o ato de violência caracterizado pela insistência constrangedora, o excesso há de ser condenável. Mas se o beijo roubado não for além de um truque de inesperada ousadia, e com certa arte, como tirar de alguém sua liberdade e fazê-lo para o resto da vida um criminoso sem perdão?

Às vezes penso que fiz bem quando abandonei o curso de Direito. Seria um advogado medíocre ou um juiz sem rigor. Imaginem os leitores se um dia precisasse defender um ladrão de beijos e nele não encontrasse um só pecado. Confesso: seria de uma tristeza terrível vê-lo preso em flagrante. Ou se caísse diante dos meus olhos um processo para julgar um beijo roubado. No mínimo, acabaria acusado de injusto contra a vítima, mas invocaria na minha pobre sentença aquela jurisprudência das leis do coração de que simpatia é quase amor.

Depois, Senhor Redator, o carnaval é uma festa de excessos feita de pecados, desde que sejam leves; e de desejos que esperam o ano inteiro. Como distinguir, do ponto de vista da criminologia, o roubo indevido de um beijo, daquele outro, roubado por desejo antigo e verdadeiro, protegido pelas fantasias legais do corpo e da alma, numa festa pagã? E se resistir, como se fosse constrangedor, e às vezes nem tanto, antes de ser uma rejeição, não passar de charme, afinal se sabe há anos que no amor romântico quem desdenha quer comprar?

O comandante Marco Antônio Janeiro, responsável pela lei naqueles municípios mineiros, e talvez por não ser de fevereiro, não aceitou desculpas. Basta dizer que também prometeu prender até as mulheres que roubassem beijos. É um homem duro e sua ordem foi de ferro. Algumas mulheres mais abusadas gostaram, alegando que os ousados deveriam pagar na cadeia pelos beijos roubados. Mas, algumas outras, quem sabe mais normais, confessaram que um beijo roubado, e se o cara tentar numa boa, não é crime. Também acho.
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Crônica publicada no Jornal de Hoje.

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