10 de abril de 2007

A Capital da Farsa e do Engodo

ARTIGO

Marcos Ferreira
Escritor

“O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.”
(Gregório de Matos)

Espero que os cidadãos honestos, os homens íntegros, os trabalhadores honrados — vocês que têm as mãos e a consciência limpas —, não tomem para si a imerecida carapuça. Peço, também, que não se deixem levar por atávicos melindres nem precipitadas exclamações de bairrismo. Aqui direi tão-só o que me pede a minha alma, o que vêem os meus olhos e o que sente o meu coração. Pois não é possível calar, não posso silenciar, fingir, fazer de conta que tudo vai bem enquanto esta cidade mergulha na desfaçatez, na torpeza e no desvario de um governo cada dia mais corrupto e degradante. É preciso romper esse transe, arrebentar os grilhões, destruir a mordaça desse novo e eficaz modelo de ditadura que nos impõem tão pacífica e traiçoeiramente.

Eleita sob o signo da leviandade partidária, a excelentíssima senhora prefeita deste município, Maria Solineuza de Góis, é o máximo exemplo do embuste, uma piada de mau gosto. Do ponto de vista técnico, a risonha e risível mulher apresenta o mesmo senso administrativo de uma samambaia. Seu quociente de inteligência é duas vezes inferior ao da mula-sem-cabeça. Não bastasse isso, tem uma assessoria de comunicação que é uma lástima. Logo no seu discurso de posse, querendo sugerir modéstia, a infeliz oradora declarou: “Eu sou uma prefeita ninfeta.” Tadinha, a “pobre” queria mesmo era dizer neófita. Então, a começar pela autoridade máxima desta urbe, percebe-se logo que o nosso povo foi vítima de propaganda enganosa. Mais uma vez.

Até bem pouco a mídia fabricada pelo Palácio da Sonolência, sede do (des)governo desta pequena aldeia, dava conta de que seríamos a capital brasileira da cultura. Não fomos. Nem poderíamos ter sido. Ainda assim, ególatras e demagogos até a medula, os governistas deram o máximo destaque à lorota. E eis que durante quarenta dias e quarenta noites choveram descaramento e cinismo sobre a mentira oficial. Rios de dinheiro foram gastos em propaganda enganosa, basbaques andavam por aí cheios de si e de coisa alguma, jornalistas de araque e intelectuais de fachada repercutiam a mutreta. Tudo embalde. São João del Rei, cidade mineira, levou o título. Agora querem à fina força fazer crer que somos a capital cultural do Estado. Outro embuste.

Porém a moda “capitalesca” parece ter pegado, mexido com a imaginação coletiva. Indivíduos de todas as esferas, naturalmente imbuídos das melhores e mais nobres intenções, já crêem com redobrado ardor que podemos ser a capital do diabo a quatro. Cada um outorga como bem entende as suas próprias honrarias. Alguém de repente exclama que agora somos a capital disso ou daquilo e acabou-se. As capitais de mentirinha se multiplicam. Da noite para o dia, o mais obscuro dos povoados assume o arbitrário status de metrópole. Daí nos auto-intitulamos capital da liberdade, capital do progresso, da resistência, da educação, do pioneirismo, da bravura, do cangaço, das chuvas de bala, dos oratórios, do são-joão, da pagodice e do vira-e-mexe.

E ai de quem ouse questionar a nossa mania de grandeza, ferir os brios desta gente, contrariar o avanço desenvolvimentista da nova Sucupira deste país. Aí o bicho pega, o mundo vem abaixo. O doido subversivo é logo pregado numa cruz de repúdio e escárnio e nunca mais será reintegrado à sociedade. Os amigos lhe voltarão as costas, os inimigos o apedrejarão em via pública, a família o renegará, as autoridades o tratarão como a uma espécie de leproso. Os puritanos e carolas o considerarão um tipo de Judas, um Caifaz, um Herodes, um Pilatos, um Dimas, um Barrabás. Sequer na política partidária — última e intransponível sarjeta — o miserável encontrará repouso. Será um morto-vivo, uma alma penada, uma assombração diuturna de si próprio.

Entretanto esse “lázaro da pátria” não perdeu a sua capacidade de se indignar diante das parlapatices e trampolinadas do poder. Não acompanhou a corrente dos hipócritas e demagogos. Não receia a vindita do governismo nem o pelotão de fuzilamento formado pela claque que habita o Palácio da Sonolência. Não, meus caros amigos, esse lazarento prefere muito antes o anonimato da vala comum aos holofotes que encimam o panteão dos falsos heróis. Pois o que somos mesmo, de fato e de direito, doa a quem doer, é a capital da farsa e do engodo. Afora isto, e entre outras vergonhas, somos também a capital do mandonismo, da oligarquia, das falcatruas, dos sanguessugas, do juninoduto, dos lixões, da imolação de um rio e do extermínio de árvores.

Isso mesmo. Aqui não se pode ver um pau em pé. Como se fôssemos todos da família de machado. A palavra arborização é considerada pelos (des)governantes locais algo tão obsceno quanto impeachment ou CPI. Mesmo entre os munícipes o termo não encontra muita simpatia. Um meu vizinho, que é motorista de táxi e não possui garagem, cortou pelo tronco dois pés de fícus que tinha diante de sua casa e agora o cidadão vem botar o carro à sombra de minha acácia. Já o rio que atravessa esta cidade é tratado pela prefeitura como uma espécie de inimigo público. Mas, inexplicavelmente, o estado-maior da asnice governista mandou edificar um mirante para que possamos assistir ao cadáver insepulto do nosso rio desaparecendo entre o lixo, a lama e o lodo.

Diz o Apocalipse que o mundo se acabará em fogo. Menos esta cidade. Aqui nos acabaremos, sim, mas será em meio a tanta festa. A política do pão e circo (em que há cada vez menos pão) segue de vento em popa. Enquanto isso a cultura propriamente dita vive ao deus-dará. Os escritores sem glória, os poetas anônimos, os pequenos artesãos e demais artistas sem palco são tratados com ranço e descaso pelos donos do poder. Porque o que importa a esses césares da atualidade é o foguetório, as balas de festim, o brilho das lantejoulas, o delírio da massa ignara, a repercussão nos jornais, a matéria na TV, no rádio — tudo vendido e remunerado com o dinheiro do contribuinte, do cidadão que trabalha, que sua a camisa e que paga os seus impostos.

Porque esta cidade, à maneira de Sodoma e Gomorra, tem-se revelado uma cidade perdida, sem lei e sem esperança. A indústria da politicalha, concentrada no grosso e no varejo da pouca-vergonha, é a grande responsável por todo esse cancro moral que assola a província. É justamente aí onde se acha a parte mais fétida desta lama. O (des)governo municipal e a Câmara de Vereadores, pólos centrais da esculhambação e da patifaria, encontram-se atolados até as cumeeiras num sem-número de falcatruas, escândalos e maracutaias de toda sorte. As investigações do Ministério Público apuram desde “pequenas” escaramuças governamentais (como tráfico de influência, nepotismo, prevaricação e sinecuras) até crimes de peculato e formação de quadrilha.

O município inteiro mais parece um vasto conventilho, um gigantesco bordel oficial. Os poderes executivo e legislativo se transformaram num sindicato de escroques, numa assembléia de gabirus e ratazanas. Não há mais oposição nem adversários. Todos têm o rabo preso. De cada dez jornalistas, pelo menos oito se venderam ou flertam com a bandalheira. Militante do partido tal empregou a filha na secretaria de beltrano. O editorzinho plagiador anda de tranquibérnias com o secretário chefe de gabinete. Colunista ipsilone, antes uma fera na oposição, agora divulga as “ações” da horda palaciana em troca de uma xícara de café e de um maço de cigarros. Uma sem-vergonheza como nunca vista em toda a lamentável história política deste lugar.

Porém o mais lamentável mesmo é que esta situação ainda possa se prolongar por anos e anos. Pois nunca que os de sangue azul e pele rosada se conformarão em perder a mamata. Usarão de todos os expedientes para continuarem a saga de rapinagem e perfídia a que deram início há mais de meio século. E terão estômago o suficiente para se lançarem aos mocambos e favelas travestidos de ovelhas e cordeiros. Tornarão a falar de honra, de honestidade e compromisso, muito embora a incompetência, a corrupção e a mentira continuem sendo marcas registradas de suas administrações. Quanto a nós, pobres e simples mortais, só nos resta torcer que o nosso bom Deus (ao contrário do que houve com Sodoma e Gomorra) nos poupe do fogo e do enxofre.

Artigo publicado na revista Papangu, 38ª edição.

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