16 de outubro de 2007

Marcos Ferreira: “Não pode existir literatura de qualidade, onde não há uma crítica literária séria”


Por Alex de Souza
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O escritor mossoroense Marcos Ferreira resolveu cutucar o vespeiro – e não saiu correndo depois. Com a publicação do ‘romance-folhetim’ (como ele mesmo classifica) Acerto de Contas, que chega à segunda parte na edição nº 44 da revista Papangu, Ferreira tece um retrato ácido e a conta-gotas da sociedade mossoroense, por meio de um narrador angustiado, “um poço até aqui de mágoas”. A obra, ainda nos primeiros capítulos, nasce rodeada de polêmica.
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Natural de Mossoró, Marcos Ferreira de Sousa, 37, é autodidata, ou o que os empolados chamariam de self-made man. Trabalhou de sapateiro, na juventude, até envolver-se com o jornalismo, tendo atuado na imprensa local como revisor, copidesque, repórter e editor de cultura. Teve uma passagem também pela Biblioteca Municipal Ney Pontes Duarte. Atualmente, trabalha com prestador de serviços, na revisão, organização e edição de livros, jornais e revistas literários em Mossoró.
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Ele vem chamando a atenção com sua produção em prosa e verso. Participando de concursos literários, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Literário Cidade de Manaus – 2006, com o livro A Hora Azul do Silêncio. A obra, inclusive, deve ser publicada pela editora da Universidade Federal do Amazonas, com prefácio do potiguar Vicente Serejo e orelhas do poeta amazonense Élson Farias, presidente da Academia de Letras de lá.
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Conquistou também os concursos Professor Vingt-un Rosado (2001) e o do Sesc/RN em parceria com o jornal cultural O Guincho. Em 2005, foi finalista do ‘Prêmio Sesc de Literatura’, com o livro de contos inédito Grosso Calibre. Além de menções e seleções em diferentes prêmios no Estado e fora dele.
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Em entrevista ao Nominuto.com, Marcos Ferreira fala sobre a polêmica que a obra vem causando na cidade, sobre os motivos que o levaram a escrevê-la e também tece alguns comentários sobre a produção literária contemporânea no Rio Grande do Norte.
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Como surgiu a idéia do romance Acerto de Contas?
Não sei exatamente como surgiu. Seria precipitado relatar uma única forma ou circunstância. Mas a idéia, o meu desejo, a necessidade e a fixação de escrever um romance não vêm de agora. Até porque uma coisa desse tipo — salvo raríssimos exemplos — não pode ser feita assim da noite para o dia, de uma hora para outra como quem aprontasse um defunto para o velório. Isso requer ensaio, bastante paciência e obstinação. Um romance é um monstro, um bicho-de-sete-cabeças, uma criatura que se volta contra o seu criador a todo momento. Mesmo quando ainda não passa de uma simples euforia queimando nos porões da alma. Quem já passou pela experiência entende o que estou dizendo. No meu caso específico, foram pelo menos quatro anos de aturada persistência, de muitas lucubrações, de vários fracassos e inumeráveis angústias. Então, como se pode concluir, esse livro não é mais que o resultado de todas essas frustrações e fracassos, de muita força de vontade, de muito ardor e teimosia.
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E o formato de folhetim, com capítulos avulsos, foi proposta sua, ou da Papangu? Foi a maneira que você encontrou de conseguir publicar a história?
É verdade. Pois não vejo hoje, no Rio Grande do Norte, à exceção da Papangu, isto no tocante a mídia impressa, nenhum jornal ou revista onde eu pudesse publicar um texto com esse grau de iconoclastia. Quer pela ‘inexistência’ de espaço nesses veículos, quer pela linha bem-comportada dos editores, tão afeitos ao bom-mocismo, ao estilo água-com-açúcar, politicamente correto, da maioria dos nossos intelectuais. Existiu até bem pouco a revista Preá, excelentemente conduzida por Tácito Costa, onde vi dois ou três contos meus publicados. Mas aí a incompetência política e a leviandade tagarela dos que se dizem comprometidos com a cultura do Estado matou a bichinha. Portanto, numa dessas tardes mossoroenses, durante uma visita que me fez, participei ao Túlio Ratto a idéia de inaugurarmos na Papangu a seção Romance-Folhetim. E ele, mesmo com todas as dificuldades, em meio a pinda e a quebradeira, como naquele verso do Bastos Tigre, topou de imediato. Mas agora já começam a surgir os primeiros ‘conselhos’ para que Túlio aborte a publicação do Acerto de Contas. É um desejo que palpita por aí nos inferninhos intelectuais da província. Não tenho qualquer pressa de transferir essa história para o formato de livro, mas senti a necessidade de previamente verificar algumas reações ou impressões relativas a esse trabalho. Assim como uma espécie de termômetro que a gente pudesse experimentar junto ao público leitor.
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Por que, no livro, a decisão de sair atirando para todos os lados?
Sim, para todos os lados, isto é certo, mas não necessariamente em tudo nem em todos. Há, por incrível que pareça, algumas exceções. As criancinhas, por exemplo, não são atingidas em nenhum momento. Nenhuma será espetada na ponta de um punhal. No entanto, como se percebe, optei por construir uma personagem justamente com essas características conflituosas, que faz o estilo metralhadora giratória, pois também o meio em que está inserida é um bocado periclitante, desleal e hostil, uma terra que pretende ser reconhecida culturalmente em âmbito nacional através de ufanismos inúteis, de autos grotescos, da pantomima e da pirotecnia que tanto ressaltam heroísmos fátuos e consagram mediocridades presunçosas. Um ambiente insalubre, repleto de cancros morais, de perfídias e intrigas. Inclusive esse narrador-personagem, atormentado e consumido por um ardente desejo de vingança, exposto à execração pública e marginalizado até por indivíduos de seu próprio elo de amizades, é uma dessas figuras contraditórias, mau-caráter, de espírito enfermiço e conduta bem pouco exemplar numa terra política e financeiramente dominada pela família Rosendo. É esse o universo ficcional do livro.
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No romance, ainda não há uma trama bem explicitada, apenas um narrador que transita pela cidade enquanto resmunga impropérios contra os desafetos. Esse livro é apenas um pretexto para que você pudesse criticar a sociedade local?
Eu não diria ‘no romance’, conforme você observa no início de sua pergunta, mas sim no que minimamente foi exposto ao leitor em apenas seis páginas até agora preenchidas na revista. Dessa forma, creio, evitamos um julgamento do todo pela parte. Mesmo porque, numa história narrada ao longo de mais de quarenta capítulos, e que talvez resulte aí numa obra de cerca de trezentas páginas após a sua conversão para o formato de livro, fica difícil perceber uma trama ‘bem explicitada’ logo de cara. Será preciso acompanhar os números seguintes de Papangu para que se possa ter uma melhor percepção do enredo. No que diz respeito ao meu intuito, ao leitmotiv, à intenção criadora, posso garantir que o objetivo desse livro não é ‘apenas um pretexto’ de que faço uso para criticar a sociedade local. De jeito nenhum. A coisa não é tão fútil assim. Claro que não perco a oportunidade de exercitar minha índole contestatória, o meu senso crítico, entretanto a minha grande ambição enquanto homem de letras (e posso ter fracassado) foi realizar um trabalho artístico, um livro de qualidade, um romance para a literatura brasileira e não uma simples peça de artilharia voltada contra supostos desafetos. Mesmo que o produto dessa fatura seja uma novela tipicamente mossoroense.
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Você não teme ser alvo de perseguições pelo teor ácido da obra?
Prefiro não acreditar nessa possibilidade. Mas também não duvido. Por muito menos pregaram Cristo numa cruz e levaram Gustave Flaubert ao banco dos réus. Bocage comeu o pão que o diabo amassou em calabouços portugueses. Gregório de Matos sofreu como um cão na Bahia. Dostoiévski viveu os infernos gelados da Sibéria. Tiradentes foi esquartejado em Minas e trucidaram o beato Conselheiro no sertão de Pernambuco. Não pretendo me comparar a nenhum desses exemplos, esteja claro, mas apenas ressalto que ninguém está livre de perseguições. Porque pensar sozinho e ter idéias próprias sempre foi um negócio muito perigoso, ainda mais numa cidade onde a intolerância, a bajulação, a mediocridade e o arrivismo politiqueiro continuam pintando o sete e bordando o oito. De minha parte estou disposto a pagar o preço, a correr esse tipo de risco. Não me importo com a questão regional, com os humores da província. O que me interessa é que eu não tenha gastado o meu tempo escrevendo porcaria.
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Alguém ainda fala com você em Mossoró?
Sim, claro que sim. Tenho amigos na cidade, gente que consegue perfeitamente distinguir arte de artimanha, literatura de lixo e amizade de puxa-saquismo. Ao contrário do protagonista dessa história, narrada na primeira pessoa do singular, não sou um percevejo humano, um leproso que a sociedade lastima e repele. Mas reconheço que houve (e continua havendo) um ligeiro desconforto, um discreto aplauso, uma contida revolta e um disfarçado rancor no meio intelectual mossoroense após a publicação desses primeiros capítulos. Até desconfio que este, logo que publicado integralmente, venha a tornar-se um romance maldito, um livro odiado e proibido na falaciosa ‘terra da liberdade’. Pois alguns indivíduos, embora cientes de que estão diante de uma obra de ficção, perdem logo o rebolado, vestem a carapuça muito facilmente e partem para a descompostura. São os títeres do ‘rosendismo’, as bestas infrenes da truculência, os fascistas da nova era, os capitães do mato, os reacionários da chibata, da mordaça e do açoite. Pois essa récua de sacripantas, composta de uma intelectualidade inoperante, beberrona, mesquinha e botequinesca, sofre por antecipação e talvez se pretenda ‘imortalizada’ em minha novela.
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Você vem conquistando prêmios e menções em diferentes concursos promovidos em várias partes do país. Por que a opção de participar dessas disputas?
Mais do que uma opção, é uma necessidade. Esses concursos, tanto no âmbito da província quanto além fronteiras potiguares, malgrado a desonestidade e o despreparo de algumas cabeças que compõem as suas comissões julgadoras, possibilitam de algum modo que tenhamos qualquer destaque no panorama literário do País. Além disso, fato notório, há o aspecto econômico, a premiação em dinheiro, que representa outro bom motivo para que tenhamos a humildade de submeter os nossos trabalhos ao crivo dessas bancas examinadoras. Não há demérito nenhum em participar desses concursos. Nenhum prejuízo ao caráter do homem de letras. Não dói nem tira pedaço da honra de quem quer que seja. Todo artista precisa de palco, necessita de um público. Ninguém que escreva com pretensões artísticas o faz para abarrotar gavetas ou engordar cupins. Quem disser o contrário é porque mente.
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Em entrevistas anteriores, você se referiu a uma certa incipiência nas letras potiguares, principalmente na prosa. O que falta à literatura potiguar?
Verdade, honra, vergonha. É isso o que falta. Exatamente como no verso do poeta Gregório de Matos, que utilizei como epígrafe para esse meu livro. Não digo talvez em relação à literatura potiguar como um todo, pois sei que nesse meio existem obras de valor e que merecem reconhecimento, mas sim à grande maioria dos literatos potiguares. Não é à toa que o Rio Grande do Norte, repito, ao contrário de vizinhos como Paraíba, Ceará e Pernambuco, jamais tenha aparecido, de forma representativa, na rica história da literatura brasileira. Não ao menos com essa consistência e representatividade que os cearenses, os pernambucanos e os paraibanos sempre demonstraram. Não pode existir literatura de qualidade, com afirmação artística e consciência coletiva, onde não há uma crítica literária séria. Trata-se de uma deficiência e de uma carência históricas, mas raros são aqueles que admitem esse fato. A maior parte prefere voltar-se contra mim com zombarias, com achincalhes e imprecações. Não é a primeira vez que reedito esse ponto de vista e experimento a sanha dos intocáveis. Esses preferem muito antes as louvaminhas recíprocas, a compadrice endêmica e a masturbação de egos. Não desejo ser a palmatória das letras em nosso Estado, não se trata de cabotinagem nem derrotismo, mas a frouxidão crítica de uma grande parte da intelectualidade papa-jerimum é um negócio que me provoca náusea. Não temos, e nunca tivemos, uma presença regular de críticos de letras. Quando muito, seja dito, o que há por aqui é colunismo literário e resenhistas de gosto emprestado. Vivem por aí em número cada dia maior, flanando pelos cafés e livrarias, trocando afagos nas colunas, mentindo nos saraus, jogando confetes e parlamentando com aquele eruditismo bem próprio da mediocridade.
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Em se falando de literatura potiguar, qual seria o seu ‘cânone’?
Não será exatamente um cânone. O termo implica rigor e tal rigor deixaria de fora algumas pessoas que merecem uma palavra de incentivo. Muito embora um palpite meu sobre a nossa literatura signifique tanto quanto um vidro de creolina no combate à corrupção em Mossoró. Mas não posso ignorar, por exemplo, a grandeza de um sujeito como Deífilo Gurgel. É, no meu entendimento, o maior poeta vivo que o Rio Grande do Norte possui. Outro cara arretado na arte do verso é o Jarbas Martins, aquele dos sonetos enguiçados no ar como um vôo de gaivota. Muito menos posso esquecer as almas de rapina de Alex Nascimento, a sedutora concupiscência de Iracema Macedo, a mestria jocosa de Antoniel Campos, a precisão vocabular de Leontino Filho, a verve sofisticada de Márcio de Lima Dantas, o simbolismo fálico de Paulo Augusto, o romantismo cor-de-rosa de Kalliane Sibelli, as canções ao luar de Francisco Nolasco, o rio dos homens de Paulo de Tarso, o mênstruo adocicado de Iara Carvalho, as ardências uterinas de Carmen Vasconcelos, a lúdica vitalidade de Antônio Francisco, as sentenças poéticas de Marcos Mairton, os versos hemorrágicos de Aécio Cândido, a chuva de palavras de Gustavo Luz, o país das maravilhas de Aluísio Barros e os temas roubados de Anchella Monte. Todos poetas desvantajosamente vivos. Quanto aos mortos, deixo-os em paz. Não me animo agora a exumar-lhes os méritos e qualidades. O mesmo critério para a relação dos prosadores, que inicio com Nei Leandro de Castro, o competente romancista de As Pelejas de Ojuara. Gosto, e não peço segredo, da escrita de Franklin Jorge, de Sanderson Negreiros, de Nelson Patriota, de Vicente Serejo, de Renard Perez (contista formidável), de Líria Nogueira, de Johann Freire e do jovem escriba Patrício Jr. Além desses, e por igual merecimento, sou leitor da boa prosa de Antônio Alvino, do verbo incendido de Carlos Santos, da falsa boêmia de Cid Augusto, da pena afiada de Túlio Ratto, dos íntimos abismos de Edílson Pinto, da conversa de médico de Damião Nobre, da sintaxe mental de José Nicodemos, das cantigas de grilo de Clauder Arcanjo, das cartas salamanquinas de David Leite e do bem-aventurado desleixo de Francisco Rodrigues da Costa, cronista de raro talento. Declinar todos esses nomes pode parecer um negócio tremendamente cacete, uma ‘ivonetada’ sem tamanho, mas ainda assim acredito que também se trate de uma caceteação necessária. Daí porque vez por outra me deixo cair nesse tipo de ‘armadilha’ dos entrevistadores. Pois são talentos como esses que citei há pouco que ainda me fazem acreditar em dias melhores para a história literária do Rio Grande do Norte. Claro que isso é tão-somente o meu ponto de vista. E que talvez não valha coisa alguma. Até porque, como diz Millôr Fernandes, um ponto de vista nada mais é do que a vista a partir de um ponto.

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