15 de outubro de 2007

Um Caso de Polícia

CONTO

MARCOS FERREIRA
Escritor
escrivaninhamarcos@hotmail.com

“Tanto a mentira é melhor quanto mais
parece verdadeira, e tanto mais agrada quanto
mais tem de verossímil e possível.”
(Miguel de Cervantes)

Madrugada de sábado. Os estampidos abalaram camas e lençóis. Estilhaçaram o marasmo do bairro e o sono dos moradores. A grita dos vira-latas fez-se ouvir noite em fora. Inflamaram-se luzes e receios. Pouco após foram surgindo as primeiras caras. As cabeças em desalinho se precipitavam para fora das janelas. Os mais afoitos se posicionavam nas calçadas e davam início à conversação que engordariam durante longo tempo. Outros se uniam ao primeiro grupo. Conversavam baixinho. Assustadiços. Muito em breve adivinha-riam o local da tragédia. Como se farejassem o cheiro da pólvora. O aroma do escândalo. Mas tinha que ser ali mesmo. A residência de número 69. A chusma de curiosos se aglomerava em frente à porta do relojoeiro.
Chamava-se Leonardo. O voluptuoso Léo das rodas boêmias. Quarenta e três anos. Rapaz velho. Um metro e setenta. Oitenta quilos. Torcedor do Vasco e atleta do garfo e faca. Um sujeito remediado. Possuía loja no Centro e casa própria. Homem de hábitos solenes e gestos contidos. Ainda mais quando longe de sua zona de recreio noturno. Ali na rua não dava as horas a seu ninguém. Untava a rala penugem da cabeça com gel Bozzano e seguia pelos bares e inferninhos da urbe. Sempre num paletó escuro. Sapatos bem oleados. Óculos faiscantes sobre o narigão adunco.
Havia cinco semanas ele suspendera as farras e patuscadas. Achava-se arriado pela incognoscível Paola. Nova moradora da Airton Cilon. Popularmente conhecida como Rua do Fuzuê. Apelido que de modo algum lhe fazia justiça à pacata rotina. Paola alugara por cinqüenta cruzeiros o quartinho recém-construído de seu Oswaldo Lamartine. Dono de outros imóveis naquele arrabalde. Dividia-o com uma senhora já idosa e bastante surda. A esta a menina chamava de avó. O dia todo trancadas no biongo. À noite arrastavam para fora os chinelos de couro e as cadeiras de balanço.
Paola tinha não mais do que vinte anos. Jeito songamonga. Pele clara. Olhos negros e pidões. O cabelo igualmente escuro. Descendo pelas costas espadaúdas. O porte ereto. Talvez fosse mais alta que Leonardo uns cinco centímetros. Peitos miúdos e firmes. Os braços longos. Cintura fina. Ancas fornidas. Pernas e tornozelos dentro dos conformes. Estava ali o biótipo da falsa magra.
Da área de casa ele a perscrutava com vivo interesse. O volume de poemas entre as mãos sapudas apenas ilustrava a ação da espreita. E não tardou para que o namoro de calçada se configurasse. A velha dormitava na cadeira. A neta resmungava uns conselhos e a pobre senhora dava de ombros. Recolhia-se ao biongo. O apaixonado casal aproveitava o momento de privacidade. Os beijos eram os mais ardentes e prolongados possíveis. Mas essa privacidade era algo hipotético. Irreal. Olhos de toda sorte e alcance se posicionavam atrás de rótulas e buracos de fechaduras.
Paola exibia acima dos lábios muito rútilos a discretíssima sombra de um bigode. A voz era tímida. Nasalada. Calçava sandálias 39/40 e gostava de conservar a boca sempre vermelha de batom. Mais de um mês naquele latejar de carnes e espíritos. Os mesquinhos limites da calçada careciam ser transpostos. Certos ímpetos e reinações eram prudentemente contidos sob a luz do poste. Então a moça passou a freqüentar a casa do namorado. As visitas foram-se tornando cada vez mais íntimas. Tanto que resultaram na tragédia que ora se esclarece à curiosidade pública.
A platéia aumentava em sisudez e barulho. O repórter freelance Alexandro Gurgel rasgou o verbo com aquele sotaque de papagaio gilete:
— Tiros! Tiros! Eu ouvi tiros!
— Mas onde? — quis saber o bibliófilo Meireles.
— Por certo na casa do relojoeiro — aparteou a cronista Líria.
Houve consenso quanto ao local dos disparos.
O publicitário Leandro Tomé assomou de bugalhos acesos e pijama às avessas. Antonio Capistrano (agitador cultural e comunista de plantão) aproximou-se de cara fechada e braguilha aberta. O cinéfilo Raildon Lucena o advertiu quanto ao descuido. O saltimbanco Carlos José e a caça-níquel Adriana Targino chegaram juntos não se soube de onde. O cartunista Túlio Ratto os fitou intrigado.
Outras janelas e portas se abriram. Um vento moleque passou assobiando entre os arames da rede elétrica. Padre Guimarães e o pintor Laércio Eugênio chegaram numa lambreta que cobriu o mundo todo de fumaça. Os pesquisadores Chico Rodrigues e David Leite surgiram no forde-de-bigode pertencente a Chico. Doutor Ronaldo Fixina aproveitou o momento para distribuir os panfletos de mais uma “Semana Modestinense de Anestesiologia”. A de número dezessete ou dezoito.
Ouviu-se de repente um som de vidro se estilhaçando. Alguém parecia chorar ou discutir dentro da casa. Talvez as duas coisas. O ambiente todo mergulhado numa grande penumbra. Ficaram nisso uns cinco minutos. Depois um pesado silêncio abateu-se sobre a residência. Nenhum ruído. Nenhum soluço mais. O folclorista Filemon Pimenta (vizinho do relojoeiro) asseverou com a boca cheia de língua:
— Bem que eu disse que essa história ainda acabaria mal.
E parecia estar certo. A irmã de caridade Yasmine Lemos iniciou uma prece. O todo-zen Milton Marques — homem prático e muito precavido — cochichou à secretária Janielly Mendonça para que esta telefonasse à polícia. Já o salineiro e galanteador Renato Fernandes (com alguma clarividência ou despeito) resmungou consertando os óculos no grosso do nariz:
— Eles se merecem.
Mas nem tudo ali era apenas tensão e angústia. O guarda-livros Alexandre Nóbrega e o anatomista Galba Silveira analisavam bastante comovidos as linhas e curvas da modelo Fernanda Tavares na Playboy de agosto. E bem depressa formou-se um pequeno círculo em volta daquelas páginas. O empresário Leomberg Dantas e o editor Gustavo Luz — cada qual com o seu um metro e meio de altura — se esticavam na ponta dos pés para conferir a boa nova. Que realmente era nova e boa. Mesmo o aristocrático poeta Paulo de Tarso Correia de Melo (num lance de calculado arrebatamento) não deixou de pousar um rabo do olho sobre o nu artístico da linda conterrânea.
Havia no ar uma promessa de chuva. O vento desacatava os fios elétricos. O musicista Damião Nobre solfejou um trechinho de “Ronda” escorado a um flamboyant. O combativo homem de imprensa Franklin Jorge apresentou-se munido de esferográfica e bloco de notas. Daí a pouco mergulharia em séria controvérsia com o funcionário público Dácio Galvão. Os dois bicudos precisaram ser contidos pelo artista plástico Rogério Dias. Dono do simpático barzinho Chap-Chap.
Os tipos que jogavam baralho numa garagem próxima abandonaram o carteado para unir-se à pequena turba. Senhoras lânguidas e mal vestidas assomaram aos terreiros e peitoris. Velhos de ventres bojudos e meninos remelosos também se achegaram ao grupo. Entre estes o poeta cantador Genildo Costa e Júnior da Offset Gráfica.
Era cerca de uma hora quando se ouviram novos disparos. O ex-combatente Woden Madruga (num puro reflexo militar) gritou a plenos pulmões:
— Todo mundo pro chão!
A ordem de Madruga foi obedecida sem argumentos nem hesitações. O bibliófilo Meireles e o poeta Leontino Filho arremessaram-se debaixo do forde do pesquisador Chico Rodrigues. Lá permaneceram não se sabe por quanto tempo. Um bêbado que desabara na calçada do odontólogo Marcos Pereira curou-se da carraspana e disparou no rumo das ventas. Os cães recomeçaram a latomia. Um nítido pesar e uma disfarçada excitação tomavam conta daqueles rostos. A madama de baby-doll vermelho (escandindo entre os dedos as velhas contas de um rosário) suspirou:
— Ai Jesus!
O comerciário Marco Túlio auto-abençoou-se num gesto bíblico com o polegar direito. Toda a população da pequenina rua exibiu-se diante da casa do relojoeiro. Mesmo de pontos afastados vinham curiosos. De uma residência mais próxima saíram a viúva do major Domingos e o fotógrafo Hugo Macedo.
— Você aqui?! — fuzilou Alexandro Gurgel. À queima-roupa.
O retratista encolheu os ombros e não soube o que dizer ao colega de ofício. Apenas adelgaçou os beiços num sorriso amarelo.
O frisson era coletivo. Tipos ordinários trocavam palpites igualmente ordinários em meio à fumaça dos cigarros e cachimbos. Um pastor da Empresa Universal do Reino de Deus pregava a Palavra com muita eloqüência e paroxismo. O acendedor de discussões Laélio Ferreira achou aquilo tudo um enorme despropósito e sussurrou para o valente sertanejo François Silvestre:
— Toma cuidado com tua carteira.
— Já estou atento — fez o outro.
Os boêmios Caio César Muniz e Cid Augusto — honrando a fama de raparigueiros inveterados — arrastavam uma asa para cima da fogosa turca Dualiba e da senhora de vida fácil Clotilde Alicate. Esta (talvez por uma afinidade ferramental) demonstrou-se logo atraída pelo queixo de tubarão-martelo de Caio César. E o fornicador Cid Augusto lavou a égua com a portentosa turca. Os interesses eram francos e recíprocos:
— Conheço um barzinho bem legal aqui próximo — arriscou Cid.
— O Chap-Chap? — Antecipou-se Clotilde.
— Esse mesmo — confirmou o boêmio.
— Já está fechado. Olha lá o Rogério Dias — concluiu a roufenha cortesã.
Um certo desânimo estampou-se na face dos notívagos. Foi quando a pudica turca fez a seguinte observação:
— Mas tem um bar que nunca fecha.
— Qual? — indagaram os três numa só voz.
— O bar da Casa Lilás...
Era o nome de um conhecido motel.
— Então é para lá que iremos — empolgou-se Muniz.
A multidão em frente à residência de Leonardo crescia com assustadora rapidez. Da rua de trás acorreram a parteira Maria das Dores e o performático advogado Sales Felipe. Este trepou num banco de pedra e recitou o “Cântico Negro” de José Régio. O recital não findou por aí. O também bacharel André Luís deixou-se contagiar e atacou com os “Versos Íntimos” de Augusto dos Anjos. O poeta quinhentista Jomar Rego saiu-se com um soneto alexandrino de forte acento patriótico. Mas — traído pela memória — ficou devendo o último terceto. A poetisa Carmem Vasconcelos fechou o recital com “Os Sapos” do pernambucano Manuel Bandeira. Houve um discreto aplauso.
Era realmente uma noite insólita. De modo que não poderiam faltar os representantes da fauna política. Ainda mais em época de campanha. O candidato tucano Geraldo Bezerra apontou numa esquina vestido num terno cor-de-rosa. Fazia-se acompanhar dos cabos eleitorais Agripino Rosado e Sandro Maia. O traje do político irritou a claque opositora. Alguém gritou o termo papangu e os três picaram a mula. Cinco minutos depois chegava o prefeito de Vila Modesta. Ofereceu apoio moral aos munícipes e pediu votos para um certo candidato do seu partido. Os deputados governistas Henrique Rouco e João Fala-Mansa sorriram para os fotógrafos. Trocaram amplexos com os circunstantes e prometeram melhorar o policiamento no bairro. De uma Brasília amarela (ou amarelada) desceram os petistas Rui Godoy e Gilvan Passos. Distribuíram vários santinhos e logo deram o fora. Dali segui-riam direto para a Casa de Saúde Nossa Senhora das Causas Impossíveis. Onde fora inter-nado às pressas o mandato do presidente Aluísio Arraia da Silva.
As pessoas continuavam chegando. Àquela altura os veículos de imprensa (rádio e televisão) já transmitiam ao vivo a barafunda toda. O pensador Antônio Alvino riscou num Chevett sem placas em companhia do cordelista Antônio Francisco. Um cachorro farejou sapatos e foi urinar no poste diante da farmácia. Uma rasga-mortalha cruzou o céu com um pio de agouro. Galos solitários cantaram em diferentes pontos do subúrbio. Um princípio de garoa ameaçou dispersar a ruidosa assistência.
Mas a chuva não veio. Os poetas Antoniel Campos e Lívio Oliveira trouxeram bules de chá e café. O vate Jarbas Martins e o diserto ensaísta Nelson Patriota abriram um litro de Pirassununga. Márcio de Lima Dantas (outro poeta) surgiu de sobrecasaca e sandálias de rabicho. O romancista Nei Leandro de Castro saltou de um moto-táxi clandestino e pagou a corrida com o restinho de Old Parr que trazia sob o braço. O casmurro cronista Vicente Serejo circulou fumando um charuto cubano do Paraguai. Ninguém arredava. O doutor E-dílson Pinto já estava a postos com uma equipe do Samu. O filósofo pós-moderno Pablo Capistrano surgiu com pés descalços e olhos de crocodilo insone. Os puxadores de piano Cefas Carvalho e Tácito Costa palestravam acerca de literatura e jornalismo cultural. A premiada poetisa Kalliane Sibelli bocejava ouvindo a conversa dos dois.
O ruge-ruge aumentava. Curiosos trepavam sobre árvores e muros. Emissoras de rádio e TV disputavam os melhores espaços. Um vendedor de espetinhos armou um fogareiro sobre a calçada da jornalista Lúcia Rocha. O romântico Ricarte Balbino e o simbolista Francisco Nolasco foram os primeiros clientes. O festejado dramaturgo Tarcísio Gurgel e o poeta Crispiniano Neto discutiam a possibilidade de se transformar aquela suposta tragédia num grande auto. E logo pensou-se um nome para o futuro espetáculo:
— Chuva de Bala na Rua do Fuzuê! — exclamou Tarcísio — O que me diz desse título? — os bugalhos em tempo de saltar da cara.
— É muito bom... — ponderou o poeta — Mas ainda sinto que está faltando ou sobrando alguma coisa.
Já o livreiro Abimael da Silva instigava o crítico literário Manoel Onofre Júnior a escrever a história do autor daqueles disparos. Tinha-se a impressão de que todo o povo de Vila Modesta se achava agora diante da residência do relojoeiro. As exceções (ao que tudo indica) ficaram apenas com a vovozinha surda de Paola e com o retraído habitante deste sobrado. A polícia finalmente deu o ar da graça para cumprir o seu papel neste rumoroso episódio. Até porque (contrariando as divagações artísticas de alguns intelectuais) o referido caso era mesmo de polícia. Duas viaturas e seis homens abriram caminho entre a massa de atentos espectadores. Os militares transpuseram o murinho da casa com ridícula agilidade e teatral bravura. Dois pê-emes permaneceram do lado de fora para assegurar que ninguém entrasse. Os demais rastejaram até a porta dos fundos e conseguiram abri-la com a mesma sutileza de um rinoceronte africano.
No quarto dos amantes a polícia deparou com uma cena menos trágica do que hilária. Paola estava parcialmente nua e havia perdido os cabelos. Choramingava baixinho ao pé da cama. Apresentava leves escoriações pelos ombros e fortes indícios de embriaguez. Era possível que houvesse entrado em luta corporal com o namorado. A saia de popelina branca feita em tiras. Os braços cruzados para esconder os pequenos seios. A peruca de negros e longos fios esquecida a um canto do recinto.
Os policiais envolveram a moça com um lençol de cama. Garrafas de cerveja e um litro de uísque vazios estavam junto ao frigobar. Leonardo era a própria imagem da vergonha. Bêbado e sorumbático. Trajava apenas um par de meias pretas e cueca samba-canção. Não dizia coisa com coisa. Demasiado grogue. A arma (um trinta-e-oito de cano longo) fora largada sobre o criado-mudo. Ainda quente. O tambor da munição aberto. As cascas de bala espalhadas pelo carpete. Cinco ou seis cápsulas haviam sido disparadas contra a laje do teto. Cacos de vidro refletiam sob o foco da lâmpada. A mancha d’água numa das paredes indicava o suposto fim de um copo de bebida.
— Estão saindo! — alardeou o bibliófilo Meireles. Ele que até então permanecera sob o forde de Chico Rodrigues.
Os policiais enfiaram o casal nas viaturas e arrancaram pela rua com as sirenas ligadas. A multidão explodiu numa vaia esmagadora. Frustrava-se assim a secreta expectativa do respeitável público em testemunhar uma grande tragédia. Na delegacia (após oito horas de xadrez e um bom esbregue do senhor delegado Carlos Newton Pinto) o relojoeiro decidiu registrar queixa contra a pessoa de Paulo Evangelista da Consolação. Por danos morais e propaganda enganosa.

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