17 de outubro de 2007

O diabo é a filmagem

Foto web
O Homem que Desafiou o Diabo,
de Moacyr Góes (Brasil, 2007)

por Eduardo Valente

Existem pelo menos três formas diferentes de nos aproximarmos deste Homem que Desafiou o Diabo. Se escolhermos chegar a ele pelos aspectos de sua produção, podemos pensar nele como um exemplar típico de um recente “cinema sanguessugadas regionalidades", aonde grandes produtores sudestinos (sejamos sinceros: na maioria cariocas) se apropriam de obras literárias e/ou teatrais e/ou folclóricas e/ou históricas de diferentes partes do Brasil, e lá estacionam suas jamantas produtivas – levando seus técnicos, atores, produtores, e tirando dali, quase sempre, financiamento local, mão de obra barata e algumas imagens e costumes, quase sempre exotizantes.
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De tão numerosas, é até desnecessário tentar listar todas as produções que seguiram por este caminho na produção brasileira pós-1995, mas cabe notar como a L.C. Barreto, produtora deste filme aqui, parece estar se dedicando com afinco ao expediente: lembremos de Bela Donna, de Paixão de Jacobina, de Nossa Senhora de Caravaggio – curiosamente todos eles pretensos “filmes populares” que não encontraram qualquer retorno efetivo de público (como de resto parece ser a sina deste novo filme).
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No entanto, sendo este texto uma crítica do filme e não uma discussão de política audiovisual brasileira, cabe menos julgar tal fenômeno em termos de produção nacional, e mais tentar ver como este processo resulta visível nas imagens do filme. E aqui podemos falar em parte tanto da presença absolutamente despropositada de uma série de atores tipicamente sudestinos-globais em papéis para os quais parecem incrivelmente inadequados (isso é, para além do suposto interesse de marketing que, aparentemente, eles nem chegam a gerar tanto assim); quanto do teor exotizante que muitas das imagens claramente criam (onde resultam especialmente feias as cenas externas do forte à beira-mar).
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No que tange o elenco, são incômodas principalmente as presenças de Fernanda Paes Leme e Flávia Alessandra que, atributos físicos à parte, simplesmente tiram qualquer credibilidade de suas personagens (credibilidade esta analisada aqui dentro da lógica não-naturalista do filme, bem entendido). Mas, não são as únicas: Sérgio Mamberti e, pior ainda, Leandro Firmino da Hora surgem beirando o ridículo, em papéis pequenos, mas bastante importantes – e cuja desproporção fica dramaticamente exposta quando entra em cena alguém como Livia Falcão ou Helder Vasconcellos, atores locais que defendem com enorme galhardia seus personagens.
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No meio do desastre geral em seu entorno, podemos até dizer que Marcos Palmeira não compromete (e entre os coadjuvantes quem tem melhor presença, até pelo caráter ainda mais radicalmente “artificial” de seu personagem, é Leon Góes, como o corcunda – além de Lucio Mauro, sempre dominando sua presença cômica).
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Uma segunda maneira de nos aproximarmos do filme seria como projeto de dramaturgia. Neste caso, o filme deixa clara sua filiação a uma tradição picaresca algo épica, encarnada no personagem de Ojuara (Palmeira), curiosa figura de herói cujas "pelejas" (título do livro que origina o filme) claramente são devedoras dos 12 Trabalhos de Hércules. Ojuara, como um Hércules dos trópicos, tem sua fama mítica acima de tudo devido a sua “macheza”, - que, se tem aspectos contestadores interessantes (impõe-se ao coronelismo ou ao beatismo), inegavelmente tem fortes aspectos de machismo (já que as mulheres sempre surgem aqui como prostitutas, verdadeiras vaginas dentatas ou idealizações de “santinhas”).
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Mais do que sua origem, porém o projeto de cinema popular de Moacyr Góes aqui traçado parece buscar uma bastante curiosa aproximação com um universo de cinema popular brasileiro típico dos anos 70: é de longe o filme recente para grande público que mais desbragadamente filma sexo e mulheres com pouca roupa, adota o palavrão como figura de linguagem constante e encena determinados momentos como um autêntico herdeiro dos Trapalhões (a ver, principalmente, a cena com Otto ou a solução da sequência com Flávia Alessandra).
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No entanto, se tentar ver o filme pela ótica da produção ou de suas propostas dramatúrgicas pode nos levar a algumas compreensões bastante interessantes do que vemos na tela, é impossível dar a qualquer uma destas duas dimensões a primazia da análise de O Homem que Desafiou o Diabo, pois precisaríamos passar por cima de uma dimensão muito mais comesinha e direta: a do seu artesanato, puro e simples. Sim, porque Moacyr Góes até tinha razão ao reclamar em um artigo no jornal O Globo da crítica publicada lá, que era francamente preconceituosa, elitista e, em última instância, muito mal argumentada – e que simplesmente não aceitava previamente que se buscasse fazer um cinema popular baseado no binômio sexo-comédia rasgada. E, de fato, não é em seu projeto de cinema, produtivo ou dramatúrgico, que se encontram os maiores pecados do filme (afinal os mesmos processos já resultaram em filmes bastante interessantes como Lisbela e o Prisioneiro ou O Auto da Compadecida), mas pura e simplesmente na sua realização.
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Porque o problema não é o que O Homem Que Desafiou o Diabo quer fazer, mas a maneira como o faz. Pois, de fato, se há algo que tem caracterizado o “autor de cinema” Moacyr Góes é o profundo desleixo visual de seus trabalhos, que misturado com a mais cabal obviedade e a dificuldade de, dramaticamente, dar cabo de construir suas narrativas (onde a melhor delas ainda continua sendo Maria, a Mãe do Filho de Deus), acaba fazendo ruir o interesse até considerável que poderíamos ter pelo projeto deste filme aqui.
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Sim, porque não é no geral que O Homem... atira no seu pé, mas no particular, a cada cena, a cada encadeamento narrativo. Citemos alguns exemplos, então, para que não fiquemos só no discurso sem evidências. A introdução do filme, que leva José Araújo a se tornar Ojuara, é encenada/montada com tal correria que parece um trailer, onde cada cena equivale a uma informação básica (chega José, ele é mulherengo, ele come Dualiba, eles casam, ela o oprime, ele se revolta). Assim, como não sentimos a duração de qualquer daquelas situações, a idéia mesmo desta mudança soa somente ridícula e a impressão que fica é que ou o filme poderia simplesmente prescindir dela e narrar só as “pelejas de Ojuara” propriamente ditas ou precisaria encenar tudo aquilo com um pouco mais de cuidado. Este andamento se mantém pelo filme todo, e a acumulação de situações e personagens pequenos funciona para retirar a força de cada uma das sequências individualmente. O personagem de Marcos Palmeira parece passear pelas sequências sem qualquer presença, e o filme parece paradoxalmente longo (porque acumula sequências demais) e sem substância (porque não nos interessamos de fato por nenhuma delas).
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Mas é mesmo na dimensão da imagem pura e simples que o filme se afunda: o tratamento digital dado às imagens termina nos apresentando uma cópia em 35mm que varia entre o lavado, o indiscernível e o simplesmente desfocado (não, não era um problema do projetor, porque tanto créditos quanto closes tinham seu foco bem definido – a questão era mesmo da definição da imagem nos constantes planos mais abertos). Nisso, ficamos com sequências que variam do simples mau gosto na manipulação das cores em pós-produção (a já citada visão do forte, ou o enfrentamento inicial na chuva) a outras que beiram a indigência imagética (o encontro com os três fantasmas, à noite). Some-se a isso uma gramática de cortes entre o banal e o desastroso (exemplos mais chocantes: a série de fusões na entrada na casa com Antonio Pitanga ou os cortes do casal que transa na cama para o menino que espia pela janela), que parece quase sempre empenhada em causar um sentido de deslocalização nos ambientes, tamanha a confusão que se estabelece, e perceberemos que o tiro no pé de O Homem que Desafiou o Diabo nada tem a ver com seu projeto de cinema.
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O fato é que, depois de seus nove filmes em cinco anos, está na hora de Moacyr Góes decidir, afinal de contas, se vai em algum momento “fazer cinema”. Pois se não há nada demais dele ter se "educado" audiovisualmente em novelas e seriados da Rede Globo, é preciso entender que a imagem, que naquele meio vale pouco, na tela grande do cinema pede uma outra atenção. Por isso, seria melhor ele largar o discurso cansado de que sofre preconceito por fazer “cinema popular” e se dar conta de que preconceituosos são os seus filmes, que parecem achar que cinema popular pode/precisa ser mal feito.

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