24 de dezembro de 2007

Conto de Natal

MARCOS FERREIRA
Escritor
escrivaninhamarcos@hotmail.com

O trânsito nervoso e congestionado não era empecilho para a frágil bicicleta. Cruzou o amarelo da Lucas Mateus feito uma bala. Por pouco não colidiu com o entregador de pizzas, que avançara cerca de um metro sobre a faixa de pedestres.

Na velocidade em que vinha, inclinando-se ao extremo, fez a curva da João Batista com arrojo e destemor. Quase raspou sobre o asfalto novo da rua a ponta do joelho. De dentro de um veículo estacionado em frente a uma agência bancária, o menininho gorducho o fitou com surpresa e fascínio, ajeitando sobre o nariz sardento os óculos de grau.

No bagageiro da bicicleta, preso por uma dessas borrachas com ganchos metálicos nas pontas, o disforme saco dos brinquedos tremulava ao sabor dos catabis e do vento. Na junção da Pedro Malaquias com a Judas Cordeiro, desviou-se de uma boca de esgoto com imprevista agilidade.

Era um Papai Noel esguio, de porte atlético e bastante seguro nos pedais. Cortava o ar da noite impulsionado por trinta e três anos de rudez e explosão muscular. Abrigava ainda nas fibras do corpo os reflexos adquiridos sobre os carrinhos de rolimã na quadra da escola. Fazia ele mesmo os brinquedos que pudesse engendrar com folhas-de-flandres, pedaços de madeira e peças imprestáveis que adquiria nos arredores de casa.

Ao cabo das aulas, em conjunto com outros garotos pobres da escola, investia contra as goiabeiras, sapotas e cajás-mangas do monsenhor André Cardoso. Ali se esbaldava até o pôr-do-sol no festivo recreio da infância periférica. Depois, sem dar pelo cansaço ou distância, regressava ao modesto lar no Morro do Belém.

Agora, no entanto, a cena era bem menos pueril. Entre uma e outra pedalada, Nazareno voltava agilmente a cabeça, como a querer certificar-se de que não estava sendo perseguido. Poderia o pulha do gerente ter acionado alguém para prendê-lo em flagrante com o produto do crime. Uma moça da loja, justamente a que mais lhe enfeitiçara os olhos pirilampos, seria arrolada como testemunha ocular. Dera um azar tremendo em ser flagrado logo por Madalena — era este o nome impresso no crachá da funcionária. Ainda repicava-lhe na concha dos ouvidos o estridente e acusador alarma:

— Pega ladrão!... Pega ladrão! — gritou Madalena ao vê-lo escapulindo com o saco nas costas.

— Pega ladrão!

Na disparada, Nazareno livrou-se primeiro da obesidade postiça que lhe haviam enxertado por entre a roupa vermelha. Até alcançar a bicicleta (já em ponto de fuga no outro lado do muro), deixou cair a reluzente faixa de ‘Boas Festas!’, que usava atravessada sobre o peito viril. Depois, ao longo das curvas e retas da cidade, foi-se embora o pequeno gorro e a sedosa peruca de cabelos brancos. Somente uma parte da nívea barba de algodão permanecia grudada à pele suarenta da face. O resto se despregara ao longo do caminho. Os olhos, vivamente azuis e precipitados para fora das órbitas, tinham neste momento um quê de marginalidade e ternura.

Teria a cor dos olhos do rapaz influenciado de algum modo o gerente ao ter escolhido a ele, Nazareno, para a função de Papai Noel da loja? Decerto que sim. Pois um sujeito de físico muito mais de acordo com o posto fora sumariamente dispensado pelo empregador, que fez o seguinte comentário ao avistar Nazareno:

— Ora, vejam só... Os olhos dele são azuis como anil!

Mas, dissolvendo a amenidade do comentário, o alarde da funcionária ainda ecoava-lhe nos tímpanos feridos:

— Pega ladrão!... Pega ladrão!

Era a primeira vez que lhe aplicavam o famigerado título da marginalidade com tanta ênfase. Decidira-se pelo furto a partir do momento em que o gerente da loja, de nome Bartolomeu, recuou no preço acertado por uma diária de Papai Noel. Ao fim de uma semana na “pele” do Bom Velhinho, recebera apenas dois terços do valor combinado.

— Não foi isso que acertamos.

— Sim, é verdade, mas as vendas também estão fracas. Ao menos por enquanto não posso lhe pagar mais que esse valor.

— O senhor não está sendo justo.

— Ora, meu rapaz, não seja mal-agradecido.

— Mal-agradecido, eu?

— Isso mesmo. Estou lhe dando uma oportunidade, aproveite. Há outros por aí que a essa hora gostariam de ficar com esse trabalho.

— Mas nós...

— Você é um privilegiado, lembre-se disso. Veja como anda o desemprego neste país. Claro que o seu salário ainda é pequeno, mas tem essa oportunidade que lhe dei. E outras podem surgir aqui na loja. Deixe terminar o mês. Não se afobe. Aguarde as vendas melhorarem. Agora vá se trocar, já está atrasado.

— Mas não é correto. O senhor me prometeu que...

— Depois! Agora vá se vestir.

Nazareno não atravessaria essa noite de Natal sendo explorado pelo unha-de-fome do Bartolomeu. Além de mal pago, havia ainda a chatice de cumprir horário. Postava-se à entrada da loja das oito da manhã até as nove da noite. Uma horinha só para o almoço e outra para o jantar. Engolia à pressa e retornava ao trabalho, vestido a caráter, para atrair os supostos clientes, que passavam arredios.

— Você é um privilegiado — a frase o insultava.

Antes houvesse permanecido na incerta rotina de flanelinha. Ao menos havia mais liberdade e o pedágio feminino no entorno da Praça do Vigário era muito mais sortido. No biscate da loja só baixavam por ali aquelas mãezonas com a filharada de nariz empinado. Raramente algum moleque se deixava atrair por sua personagem.

— Você é um privilegiado.

Sentia-se mais no papel do Homem Invisível do que em qualquer um outro. Entendia que as crianças de hoje já não alimentavam essa lorota de Papai Noel. Ele próprio, filho unigênito de um simples carpinteiro e de uma humilde dona-de-casa, constatara muito cedo a tal farsa natalina. Pobrezinhos de jó, os pais de Nazareno não tinham dinheiro para presenteá-lo com os brinquedos da moda.

— Não seja mal-agradecido.

Não era. Muito menos devia gratidão ao picareta do gerente. Então, para vingar-se do unha-de-fome e descolar um trocado no comércio clandestino do Morro, ele saltou o muro da loja com o saco cheio de brinquedos. Venderia alguns artigos e distribuiria o restante com os moleques da comunidade. O jipe com controle remoto seria ofertado ao menininho Baltazar, sempre tão resignado em sua perpétua cadeira de rodas. A locomotiva ficaria nas mãos do extrovertido Belchior, filho de um amigo guardador de carros. O circunspeto Gaspar ganharia os soldadinhos de borracha da ONU. A boneca Barbie e o jogo de maquilagem iriam para a filhinha da lavadeira Ester.

Nazareno pedalava a plenos pulmões. Alcançou o bairro de Nova Canaã e atravessou a ponte Ezequiel Habacuque. Descia agora em alta velocidade a íngreme ladeira do Bom Pastor. De quando em quando virava a cabeça para trás, perseguido pela desconfortável idéia de que a polícia poderia surgir a qualquer momento no seu encalço.

— Pega ladrão! — a voz da garota parecia ecoar em cada esquina.

Por viver à margem da sociedade, embora com outros meios de entendimento e raciocínio, sabia-se marginal. Mas ninguém lhe marcara ainda com o infame título.

— Pega ladrão!

Não era um bandido, não tinha antecedentes criminais nem índole malfazeja. Até se considerava um elemento de bom coração, figura benquista no meio social de que era integrante. Daria o jogo de damas com estojo de fórmica ao estudioso Davi, filho caçula do amigo Moisés. As vaquinhas, os bois, os cavalinhos e a fazendola de plástico seriam do moleque Jonas, que não tinha nem pai nem mãe e era criado pela benzedeira Rute.

Tudo teria transcorrido na mais completa felicidade, caso o semáforo da ladeira do Bom Pastor não houvesse bruscamente saltado do verde para o vermelho.

Essas lâmpadas costumam queimar e os filisteus deste lado do mundo levam tempo demasiado longo para fazer a troca. Daí acontece de alguns sonhos e ilusões se apagarem com as lâmpadas que queimam nos sinais de trânsito. Pois de nada adiantaram a enorme freada e o esforço do motorista para conseguir livrar Nazareno. Junto à bicicleta destruída, em meio aos brinquedos espalhados sob o caminhão-tanque da White Martins, uma frágil bailarina rodopiava em sua caixinha de música.

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