3 de maio de 2008

Um conto de Cláudia Magalhães

Paraíso Perdido

Um velho sobrado com paredes e teto de vidro. Ao redor, árvores altas, frondosas, em meio a inúmeras folhas secas que completam o cenário sépia, banhado pela luz da lua e do Sol que se despede deixando no ar uma aura de tristeza, de melancolia.

Ao adentrarmos no teto de vidro, observamos uma mulher, Dolores. Os seus olhos olham fixamente para o homem com os pulsos cortados, sentado numa velha poltrona a seu lado. Pedro, seu grande amor. Ele foi embora, deixando um olhar sereno, doce. O amor dorme ao sabor dos ventos e seguindo os caprichos de Deus ou do Diabo ele pode dormir no céu e acordar no inferno, ela pensa, imóvel, sentada sob o chão frio. Nenhuma lágrima. A dor velha, agora, flutua de mãos dadas com a loucura e sente-se feliz. Seus olhos cansados comprovam as inúmeras noites em claro em que andou pela casa como uma morta viva. Desvia o olhar e vê sobre a mesa, o pequeno aquário, que ganhou no início do relacionamento, com dois peixinhos, um azul e um vermelho. Eles são parecidos conosco: o azul é você, tranqüilo... e o vermelho sou eu, afogueada, acelerada.... Ela disse com alegria. Eles se amavam demais. Era um amor forte, belo, verdadeiro... O paraíso. Fugiam de tudo e de todos, eles se bastavam. Caminhavam sempre juntos, ela com o pé direito sobre o pé esquerdo dele. Comiam do mesmo prato, bebiam do mesmo copo... O amor perfeito... Perfeito demais...

Até que veio o medo quase incontrolável da perda e passaram a cobrar provas constantes de amor, no início controláveis, depois perderam o freio. O amor estava ameaçado... Descobriram o inferno... A casa perdeu o perfume, ficou fétida, as paredes mofadas de lágrimas virou um ninho de vermes. Os pés, que antes flutuavam em perfeita sintonia, agora, andavam grudados no chão com suor e saliva onde se arrastavam cobras com línguas afiadas e gargalhadas alucinantes... Deitavam, todas as noites, com as mãos entrelaçadas sobre o peito, feito cadáveres. Adormeciam e acordavam na mesma posição. Dormiam a noite inteira e amanheciam com olheiras... Não tinham sonhos.. Até que passaram a não dormir mais...

Dolores aproxima-se de Pedro, segura o seu pulso esquerdo com as mãos, leva-o até a boca... Como é doce, pensa. Fecha os olhos e lembra dos últimos momentos com o seu amor:

- Antes de você, eu só fazia envelhecer. Você trouxe a vida e a partir desse momento eu só desejei a morte. Você entrou por uma porta que eu não sabia existir. Vi o teu amor se aproximar e entrar em mim com a ternura de uma lâmina afiada. Sangrei e chorei. Quanto mais aumentava a tua doçura, mais eu me cortava. Quanto mais eu sangrava, mais eu te amava. Queríamos o céu e entramos no inferno. Cortamos os pés com os restos de nossas vidas e nos mutilamos com as nossas mãos de céu.. – ela disse com tristeza.- Estamos diante do abismo, em busca da morte...
Silêncio...

- É o que você quer? – ele falou com ternura.

- É o que eu mais desejo.

Ele se levanta num impulso violento. Com passos largos, segue em direção ao armário da cozinha e retira de uma das gavetas uma faca. Ela o observa com as feições e a postura de quem ama demais, característica essencial para as maiores desgraças. Ele volta à sala e corta, sem titubear, os pulsos. Ela sorri agradecida.

- Eu te amo, Dolores... Acredita em mim?

- Sim, eu acredito...

Ele se foi. Sentia-se, novamente, feliz e amada. Ela levanta, segue em direção ao velho baú e retira uma corda. Volta à sala e com a ajuda de uma cadeira, prende-a num lastro de madeira do teto. Vê o seu corpo tingir-se de vermelho. Enlaça a corda no pescoço e joga-se no abismo como quem deseja voar... Sente o coração acelerado livrar-se das dores e das saudades... Nada mais importa, os peixes do aquário estão mortos.

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