22 de outubro de 2006

A Manga e o Sal

Divulgação
Lívio Oliveira

Na minha infância, quando morava na rua que leva o nome do poeta Segundo Wanderley, no Barro Vermelho, onde ainda hoje habitam os meus pais, uma das minhas maiores realizações era subir na frondosa, centenária e, até então, surpreendentemente produtiva mangueira que ficava no extenso quintal.
Aquela mangueira, com suas belas e rosadas mangas, era o playground da minha infância. No seu topo eu passava tardes e manhãs (à noite, como uma caverna, a árvore era habitada por felizes morcegos), aventurando-me, como num filme de Tarzan, escalando as alturas arriscadas, colhendo e largando os frutos pesados e doces que desabavam por entre as folhas longas e lustrosas e os galhos esverdeados, produzindo um som sibilante peculiar até o barulho retumbante da queda. A queda, que eu mesmo experimentei um dia e que causou um dos maiores sustos que minha mãe já teve na vida: o filho prostrado no chão, de bruços, próximo a um ciscador com as pontas de ferro oxidado viradas para cima. Foi só o susto do baque. Nenhum órgão ou osso avariado. O trauma, no entanto, fez com que eu demorasse a voltar aos galhos daquela árvore.
Essa queda, a primeira forte, símbolo de outras que viriam na minha existência, também experimentou meu irmão mais velho, Jansênio, maior expressão de aventureiro – e eu buscava imitá-lo – que se apresentava na época. Caiu de uma altura maior, mas, como eu, não chegou a quebrar osso, para alívio momentâneo de todos, pois as incursões à nave da mangueira voltavam a se repetir pouco tempo depois.
Certo dia daquela época, esse mesmo irmão, revoltado temporariamente com uma negativa paterna de alguns dinheirinhos, decidiu dar o troco das moedas que não recebeu, preparando a cena: subiu até o ponto mais alto, ali onde os galhos se retorciam – ciosos de não poderem mais crescer – e ameaçava se jogar. Papai, à porta, dizia que iria chamar os bombeiros. Eu ria, incrédulo da cena. Lembro-me que o único efeito doloroso disso tudo foi um grande galo na minha cabeça, realizado pela mão paterna, que, fechada, rápida e certeira, atingiu meu cocuruto na hora em que me esbaldava no riso.
Na mangueira subiu também uma vez o meu irmão Janair que logrou realizar um dos maiores dramas da minha infância, quando, aos berros que se ouviam em quase todo o Barro Vermelho – da Jaguarari até a Olinto Meira, da Segundo Wanderley até a Meira e Sá – se desesperava, afirmando que as abelhas estavam o atacando. A cena era patética e assustadora. Hoje, graças a Deus, somente risível. Meu irmão, longilíneo como sempre foi, preparava-se para saltar, de pé sobre um galho forte. Um dos outros manos estava sob a mangueira, com os braços abertos, aguardando o tombo, como se pudesse segurar aquele varapau que perigava se precipitar lá de cima. Até que a coragem apareceu (ou a platéia) e o que estava trepado desceu, aos gritos e choros, ralando-se todo pelo tronco espesso e verrugoso da árvore fantástica.
Não me lembro de minha irmã Jaiana, ou o meu irmão Jaime, terem se arriscado nos braços daquela planta majestosa. Preferiam o perfume e o sabor dos frutos carnudos, fibrosos e suculentos, debaixo da bela e agradável sombra (que nos períodos de entressafras – porque não corríamos o risco de termos a cabeça atingida por um bólido cor de rosa – era o nosso lugar predileto de estudos).
Hoje são só lembranças. Nesses dias de verão, a mangueira, aquela mangueira única e inesquecível que se tornara quase um membro da família, já não vive, atingida que foi pelo cupim. Resta o sabor da memória. O sal da lágrima que embota o olho saudoso de quem viveu aqueles dias felizes e ingênuos. Esse mesmo sal que era melado e aplicado ao fruto sensual e colorido, que sorvíamos como o seio materno, lambuzando de paz e de conforto os nossos rostos e espíritos infantis.

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