20 de abril de 2007

Ao sabor da poesia


por Rafael Duarte

Resumir “Licânia” a um livro de contos seria um desmerecimento. Tanto ao autor, como a obra apresentada através de 128 páginas que suscitam uma dúvida saborosa, daquelas que deixam você sem saber se o que está exposto ali é prosa ou poesia da boa. Propagandeado na orelha como a estréia em livro do cearense radicado em Mossoró Clauder Arcanjo, “Licânia” se sorve em pouco tempo. Porque se devora. Em Natal, o lançamento da obra que sai pela editora mossoroense Sarau das Letras ocorre hoje, a partir das 19h, na livraria Siciliano do Midway Mall.

Na apresentação, o escritor Manoel Onofre Júnior tenta desmistificar Licânia. Diz ele assim: “Licânia, cidadezinha do interior, onde transcorre a ação de vários contos, é Santana do Acaraú reinventada”. A partir daí, então, não fica muito difícil imaginar que Santana do Acaraú é a cidadezinha do interior cearense onde nasceu o autor do livro.

Posto isso, a impressão é de que Clauder Arcanjo vai burilando, através de uma linguagem caracteristicamente forte e sensível, os personagens com quem conviveu, de que ouviu falar ou que na época a imaginação dele foi capaz de absorver.

Outro ponto que chama a atenção no livro é a forma como o autor achou de confirmar o que Euclides da Cunha (Os Sertões, 1902) eternizou na frase: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Não há vestígio de nenhuma busca incessante pelo tal do final feliz. “Licânia” é trágico. O sofrimento parou ali e ficou. E a dor, assim como Licânia, se reinventa.

No conto “Cemitério”, por exemplo, a descrição realista do povoado Sempre Verde é uma pérola. Começa nestes termos. “Era um povaréu que se espreguiçava nas barrancas daquele riacho de pouca água, mas que os mais ingênuos insistiam em chamar de rio. Corpos esqueléticos, tetas secas nas mulheres, barrigas quebradas e intumescidas pelos verme nos meninos, pernas afinadas nos homens, obra da cachaça rotineira. Pedras nos arredores, riacho quase seco no meio, povo depauperado nas ribanceiras - descreve-se assim o povoado Sempre Verde. Os habitantes, esses nem atentavam para aquela ironia. De verde, só o nome. Melhor seria, Sempre Cinza”, escreve.

Melhor ainda é o enredo da história. Naquele canto de mundo, segundo o texto, nasceram Felisberto e Raimundinha. O menino até que nasceu bem. A garota é que veio à luz à base de muito cruz credo. Veio a adolescência e a coisa se inverteu. Felisberto ficou doente e Raimundinha cheia de vida. Acabaram se casando. A menina, então, embuchou e no parto morreram mãe e filha. O coveiro da família foi Felisberto, que não deixou mais o cemitério. A partir daí, depois de descrever a desgraça que se sucedeu na vida do rapaz, o autor levanta os dois pés do chão e pega o rumo de Licânia. Veja você que Felisberto se apega tanto ao cemitério que o local passou a ser o único recanto do povoado com verde e flores num raio de seis léguas daquela redondeza. E a beleza atraiu os meninos que “embandeiraram-se de mala e cuia para as cumeeiras das catacumbas”, as viúvas passam a visitar os maridos mortos, até o padre resolver rezar as missas sob a brisa que soprava por ali. Resultado: o povo abandonou a cidade e foi morar no cemitério que, por ordem de Felisberto, continuou a chamar cemitério.

E essa, amigo, é apenas a quinta das 24 histórias que desembocam na Licânia de Clauder Arcanjo.

Texto publicado na Tribuna do Norte.

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